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Montanha

Opinião  »  2010-09-03  »  Né Ladeiras

O portão de ferro negro mantém-se fechado desde que chegaram. Uma espécie rara de heras protectoras enrolou-se-lhe nas dobradiças e selou a fechadura. Sob a clorofila pacífica de dias felizes resguardam-se do efeito da idade porque ali todos os gestos permanecem inalterados. O cesto de apanhar fruta tombado, o escadote encostado à tangerineira, o livro em cima da manta, a chávena de chá com a asa partida (a preferida dele), o boné de sarja puído, o caramanchão onde fazem colares de desejos desafiando a montanha que os fita gelada do seu cume. Às vezes perguntam-se de onde lhes vem tanto amor, sentem-se pequenos frente àquele maciço impenetrável. Às vezes falam do medo que têm de nada ser real e acordarem longe um do outro. Mas não. Os séculos passam, o éden é aquele onde vivem. Depois comem fruta, colhem trigo, amassam o pão de cada dia. Depois têm-se aos dois. Não é preciso mais. E enchem-se de poesia. Ele dedica-lhe sinfonias, ela escreve-lhe todos os dias. Pintam centenas de telas sobre a sua história e outras tantas coreografias sobre a vida no paraíso. Vestem-se e despem-se sem cansaço. Ele lava-lhe os cabelos com água da chuva e pinta-lhe as costas com pequenas luas azuis. Ela perfuma-o com as essências que guarda dentro dela e que são só dele.

O caso tornou-se conhecido. Para lá do portão de ferro chegaram ecos de um amor desmedido, bizarro, sem necessidade de outros mundos, que não o daqueles dois. Houve quem apostasse que em pouco tempo se fartariam um do outro. Mais tarde, e porque não havia indícios disso, começaram a ser alvo de inveja e por fim motivo de gozo pois ninguém vive assim tanto tempo sem ser louco. Há-de chegar o tempo em que tudo acaba. Vão deixar de sentir o que sentem um pelo outro, diziam. Depois o caso passou a ser esquecido porque já não havia nada a acrescentar. Ninguém os conhecia nem sabia de onde tinham surgido. Somente, um dia, aqueles portões abriram-se para deixar entrar o homem e a mulher, que caminhavam abraçados sobre pétalas de uma flor rara que foi plantada pelos dois, assim que se fecharam lá dentro. Com o passar dos anos houve quem reavivasse a história da mulher e do homem, tão amados sob as tangerineiras e jasmins. Talvez aqueles dois tivessem sido abençoados por algo maior e quem sabe, pudessem abençoar outros que, como eles, desejavam ser diferentes. Rumaram até lá, ficaram acampados do lado de fora, entoavam preces e fizeram promessas. De uma das vezes ela espreitou pelo portão e sorriu-lhes. Os homens ficaram fascinados com os seus olhos claros e desejaram-na. De outra vez foi ele que estendeu tangerinas e saquinhos de jasmim através das grades e as mulheres admiraram-lhe as mãos delicadas. Uns e outros acharam que o que havia acontecido nas suas vidas ficava muito aquém. Desiludidos com o pouco que tinham desfizeram-se dos compromissos e cada um partiu com uma nova paixão, elas pelo homem das mãos de príncipe e eles pela mulher dos olhos claros. Com o passar dos meses começaram a amaldiçoar a felicidade daquele lugar protegido por heras e ferro, inacessível às suas descrenças. Fartaram-se do sentimento platónico e passaram a sentir ciúmes daqueles dois, que se tinham a todas as horas, e eles sem poder chegar perto de tanta abundância. Acabaram de refazer os compromissos que não queriam, uns com os outros, para não se sentirem tão sós. De cada vez que passavam perto do lugar intransponível olhavam-no de lado e incomodados remoíam a impossibilidade de arrancar pela raiz os abraços que eram dados. Desconfiavam que para sempre seria uma palavra tão difícil de desafiar como a montanha gelada que os fitava.
 

Música: The Orange Breath, Tangerine Dream (The Seven Letters from Tibet, 2000)

 

 

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