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Templo

Opinião  »  2010-09-17  »  Né Ladeiras

À noite, quando me julgo no limiar da sonolência e caminho para a rede sertaneja, sou despertada por um rumor de asas que quase é voz e sopra no meu ouvido. Esqueço-me do nada que fui minutos antes e entrego-me à interpretação daquela presença. Desdobro-me sozinha em conjecturas, negoceio os medos e as dúvidas, reflicto ponderadamente a parte incomensurável que devo ser algures e aguardo-me. A presença de asas devolve-me pensamentos que pensava ser meus, mas não são, descubro depois. Acendo um incenso, medito. Tomo um banho, entoo uma oração. Abraço uma luz que surge na escuridão do alpendre enquanto olho para o jardim, como um templo. Vejo a sua vida passando por horas e tonalidades diferentes. Esta energia no jardim e fora dele, junto ao meu ouvido e para além do meu pensamento, conduz-me a um estado de graça que não compreendo porque me é dirigido. Em tempos existiram presenças que me atormentavam e relembro as mulheres que sobrevoaram no meu espaço interior. Frida, Isabelle, Virgínia, Sophia, Camille… paixões em carne viva, amores no tempo errado, desejos decrescentes, solidões vertiginosas, entregas improváveis. Mulheres descosidas, inadaptadas, sérias e arrebatadas, indecifráveis, atingidas pela mesma sofreguidão escarnecedora do amor. Clarice deformada sobre as compras na cozinha, Marguerite deitada sob o ópio espiralado da sala, Agatha aparando crimes na relva do jardim, Isadora nua na estrada sinuosa das perdas, Violeta tingida de sangue em tapeçarias Mapuches, e caso-me com todas, fico-lhes com as estórias, tomo-as para mim, as dores, para além das de estimação, cacos amontoados junto dos meus, vidas em cruz que precisei exorcizar para que tivessem um final feliz, sem mágoas, em nome de todas. Não consegui. Olho-as com tristeza a olharem para mim de igual modo. Que fazemos? Porque continuamos?

Este bater de asas parece redimir a falta de amor-próprio que nos atingiu, fosse o talento grande ou pouco para aceitar o que não se compreende. Raciocinar com o coração, talvez, obrigar a mente a entrar no sistema circulatório, percorrer cada artéria e sentir. É nisto que penso enquanto a pré-sonolência prepara o templo que acolhe o meu eu imaterial. Espalho a fragrância do Lotus branco na rede que me aguarda como um útero. Serei escolhida, outra vez, para desdizer qualquer erro nos desencontros deste tempo, na mudança de escala dos voos imaginados. Serei só e só antes de chegar. Diante do templo a presença, quase voz, acompanha-me como fez com as outras mulheres, que sós se viram no fim. Haverá um abraço? Uma luz? Uma cara conhecida? E as mulheres? Onde estarão as mulheres? Luto acordada, dou-me à sonolência, fico livre no sonho. É por aqui, o caminho das asas, sinto o ar que deslocam à sua passagem, inspiro a fragrância, agora dourada, fecho os olhos. Estou do lado de fora entrelaçada no jardim. Pode ser isto, pode ser mais e outra coisa. A presença esclarece a parte irredutível de mim, apazigua as inconstâncias do meu himalaia pessoal, transmuta o fosso de himeneu, onde todas as mulheres caíram um dia, num rio juncado de Lotus gigantes que as resguardam de qualquer provação. Recolhe as suas enormes lágrimas e oferece-as aos devas das margens, que ficam contemplando a longa viagem. A presença das asas quase voz e as mulheres que fui deitam-se comigo, todas ligadas pela rede sertaneja do lado de dentro do jardim, olhando o templo que nos aguarda do outro lado.
 

Música: This Woman’s Work, Kate Bush (The Sensual World, 1989)

 

 

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