Monólogo
Opinião » 2010-10-01 » Né Ladeiras
Podes ser ilusão quase a tanger a verdade. Quase sinto o que és neste fundo e noutro céu, mas não sei se te consigo acompanhar.
Respira fundo. O rio não se consome com a vida das sereias que se refugiam no mar. Ele sabe o que procuram e o que esperam dos homens amarrados aos mastros. Quase sempre se soltam e se afundam com elas. O rio já foi mar antes de cair.
Se ficar na margem continuarei a ver-te e não precisarei de morrer. O meu tempo é diferente do teu, parece que sempre foi, embora pressinta que houve um tempo em que não precisámos dessas diferenças.
Nunca se morre, tu sabes. Este rio retoma-nos no ponto em que ficámos e de novo os danos e as escoriações são contornos imprecisos. A estória escreve-se e soma-se no destino cumprido, mesmo que não tenha de se cumprir como pensamos.
Todos os rios são parecidos. No princípio a infância e depois a assombração. Entre cada braçada vai-se deixando de ser um signo compulsório e escolhe-se a criatura na lei da integridade. Transitei da mágoa para a submissão. Não sou como tu.
Essa margem é segura, pensas. Alturas houve em que o rio a transcendeu, lembras-te? Os juncos, as pedras, as sementes, tudo engolido pela força de ser mais do que um discípulo no leito. Outros caminhos possíveis, outras escolhas. Nada detém o que precisa de acontecer.
Fala comigo de forma clara. Às vezes perco-me com o que dizes e daqui da margem as coisas ficam difusas. És o que pareces ser? Porque vives aí? Porque não sais e aceitas que o rio passa e tudo que está com ele? Queres ser o tempo? Vês como me confundes? És complexa e no entanto tão livre. Isso assusta-me. Não sei se te devo levar a sério. És insustentável. Parece-me que és. As tuas mãos quando fazem círculos na água emocionam-me porque são reais e consegues que o rio te caiba.
Eu junto-me aqui comigo. Sou o que vês, nem menos nem mais. Entro e saio, desperto-me nos campos junto dos homens que deixam marcas, que atiram raízes para o pântano e ateiam fogo às pedras. O meu corpo não está só entre margens, é tudo o que queiras abraçar, um mar que já foi rio e um rio que já foi ar. O ciclo do fogo surge, porque é próprio dos abraços incendiar quem espera. Sim, pode ser que até caia uma sombra, um pássaro da treva que se liberta para iluminar os homens tristes e cansados. Os homens que desistiram caem em sonhos impossíveis, fogem a arrastar correntes amargas. Tu não. Permaneces, por enquanto, aí. Eu sou a lembrança do teu amor distante e suspenso que um dia tomaste pelas mãos, minhas e tuas, e rasgaram a seda da pele que era a nossa.
Sinto uma vaga saudade, mas não o suficiente para acreditar que tenha sido assim. Eu aprendi a saber-me nesta condição, na margem, espectador em silêncio, guerreando dúvidas, quase a atirar-me para o abismo constelado. Pergunta-me porque me sinto tão livre e tão preso.
E porque havia de desafiar o olhar grave e profundo que tanto vê dessa margem?
Eu disse-te que daqui as coisas são difusas e desfocadas. Não sei se é contigo que falo, se é com a minha imaginação. Como posso saber que és tu e não eu a ver-me em ti? Sabes de que são feitas as ressonâncias? Miragens de som. E eu tenho falado tanto sozinho, tenho-me dito que há passos em vão, que os barcos solitários se esquecem de existir, que todos ficamos encostados nas margens de um erro qualquer. E se eu estou à tua espera? E se eu quiser que me venhas buscar? E se eu não passar de um simples poeta adormecido? E se és tu a causa das coisas? Não me posso ter enganado tanto. A alma é dor ou êxtase?
E porque tem de ser uma coisa ou outra?
Porque assim entenderia melhor. Sinto que posso ser arrastado pelos astros derradeiros que dominam o tempo e nessa corrente despudorada levar-me a ti. Disseste que as margens ficam submersas e inundadas. O neófito engolido pelo leito de um rio. Como me salvaria? Levar-me-ias ao fundo como aos pescadores ousados? Como ficaria quando a maré me entregasse?
Monólogo
Opinião » 2010-10-01 » Né LadeirasPodes ser ilusão quase a tanger a verdade. Quase sinto o que és neste fundo e noutro céu, mas não sei se te consigo acompanhar.
Respira fundo. O rio não se consome com a vida das sereias que se refugiam no mar. Ele sabe o que procuram e o que esperam dos homens amarrados aos mastros. Quase sempre se soltam e se afundam com elas. O rio já foi mar antes de cair.
Se ficar na margem continuarei a ver-te e não precisarei de morrer. O meu tempo é diferente do teu, parece que sempre foi, embora pressinta que houve um tempo em que não precisámos dessas diferenças.
Nunca se morre, tu sabes. Este rio retoma-nos no ponto em que ficámos e de novo os danos e as escoriações são contornos imprecisos. A estória escreve-se e soma-se no destino cumprido, mesmo que não tenha de se cumprir como pensamos.
Todos os rios são parecidos. No princípio a infância e depois a assombração. Entre cada braçada vai-se deixando de ser um signo compulsório e escolhe-se a criatura na lei da integridade. Transitei da mágoa para a submissão. Não sou como tu.
Essa margem é segura, pensas. Alturas houve em que o rio a transcendeu, lembras-te? Os juncos, as pedras, as sementes, tudo engolido pela força de ser mais do que um discípulo no leito. Outros caminhos possíveis, outras escolhas. Nada detém o que precisa de acontecer.
Fala comigo de forma clara. Às vezes perco-me com o que dizes e daqui da margem as coisas ficam difusas. És o que pareces ser? Porque vives aí? Porque não sais e aceitas que o rio passa e tudo que está com ele? Queres ser o tempo? Vês como me confundes? És complexa e no entanto tão livre. Isso assusta-me. Não sei se te devo levar a sério. És insustentável. Parece-me que és. As tuas mãos quando fazem círculos na água emocionam-me porque são reais e consegues que o rio te caiba.
Eu junto-me aqui comigo. Sou o que vês, nem menos nem mais. Entro e saio, desperto-me nos campos junto dos homens que deixam marcas, que atiram raízes para o pântano e ateiam fogo às pedras. O meu corpo não está só entre margens, é tudo o que queiras abraçar, um mar que já foi rio e um rio que já foi ar. O ciclo do fogo surge, porque é próprio dos abraços incendiar quem espera. Sim, pode ser que até caia uma sombra, um pássaro da treva que se liberta para iluminar os homens tristes e cansados. Os homens que desistiram caem em sonhos impossíveis, fogem a arrastar correntes amargas. Tu não. Permaneces, por enquanto, aí. Eu sou a lembrança do teu amor distante e suspenso que um dia tomaste pelas mãos, minhas e tuas, e rasgaram a seda da pele que era a nossa.
Sinto uma vaga saudade, mas não o suficiente para acreditar que tenha sido assim. Eu aprendi a saber-me nesta condição, na margem, espectador em silêncio, guerreando dúvidas, quase a atirar-me para o abismo constelado. Pergunta-me porque me sinto tão livre e tão preso.
E porque havia de desafiar o olhar grave e profundo que tanto vê dessa margem?
Eu disse-te que daqui as coisas são difusas e desfocadas. Não sei se é contigo que falo, se é com a minha imaginação. Como posso saber que és tu e não eu a ver-me em ti? Sabes de que são feitas as ressonâncias? Miragens de som. E eu tenho falado tanto sozinho, tenho-me dito que há passos em vão, que os barcos solitários se esquecem de existir, que todos ficamos encostados nas margens de um erro qualquer. E se eu estou à tua espera? E se eu quiser que me venhas buscar? E se eu não passar de um simples poeta adormecido? E se és tu a causa das coisas? Não me posso ter enganado tanto. A alma é dor ou êxtase?
E porque tem de ser uma coisa ou outra?
Porque assim entenderia melhor. Sinto que posso ser arrastado pelos astros derradeiros que dominam o tempo e nessa corrente despudorada levar-me a ti. Disseste que as margens ficam submersas e inundadas. O neófito engolido pelo leito de um rio. Como me salvaria? Levar-me-ias ao fundo como aos pescadores ousados? Como ficaria quando a maré me entregasse?
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