Mulheres no canto de Avita
Opinião » 2010-11-04 » Né Ladeiras
Cai chuva sobre a rua, os passos firmes que já foram, a folha do livro solta, o telhado da tua casa, as esplanadas vazias, o barco deixado na margem, o meu vestido desbotado, esta tristeza infinita que se entranha nas pedras, o medo de não encontrar outro rosto tão puro, a coragem para espalhar flores na dor funda, a diáspora numa jangada de papel, a fala aturdida e incoerente de quem ama, a luz feliz na tela do pintor, o canto de Avita escrito pelo poeta, a chuva sobre a tua casa, a tua casa, a tua casa.
Chovem lágrimas dos olhos de Deolinda, de Celeste, de Emília, coisas passadas, tantas penas, fome e frio, o sonho de ser professora, de ter uns sapatos, de fazer o enxoval em seda, tempos difíceis de heroínas anónimas, a máquina que lhes capta a expressão, a câmara que regista as suas vozes cansadas, os pés magoados na memória de Emília, a enxerga das olheiras de Celeste, o roxo da alma de Deolinda, imagens reflectidas nas pupilas sem brilho, num riso forçado, riscada em esboços de graffiti, a pensar no que Avita faria no meu lugar, com tantos sonhos que caem à tua porta, à tua porta, à tua porta.
Que luz se faz sobre estas vidas, os calcanhares em ferida de Emília depois de se atrever todo o dia calçada, o ventre de Celeste mal acordado pela noite passada no chão, a alma amarfanhada de Deolinda de tanta saudade mortal, como a minha, assim as delas, lucernas na negritude, sustendo balsamários de reserva, paredes húmidas a escorrer lutas corpo a corpo, sem a alegria do som das pulseiras de Avita atrás da cortina de linho, a paz que sente depois do riso, que eu preciso para enfrentar a tua janela, a tua janela, a tua janela.
A caixa de correio está vazia, as pessoas passam pela rua sem saber das mãos que tocaram nos plátanos, o rio corre porque é assim desde sempre, o guarda-chuva partido foi encostado à parede, ouve-se uma gargalhada em coro, afinal houve uma alegria que despontou em cada uma das mulheres. Celeste, Emília, Deolinda, riem em uníssono da sua miséria com uma dignidade que admiro. E tu, Avita? Junta-te a nós, diz do teu mundo e como o encontraste. Vieste como elas partiram, quase a pedir desculpa pelo incómodo, tantos trabalhos, mais outras incertezas, amuletos de coragem, mas valeu a pena, afirmam. Eu calo-me porque nesse tempo não havia jacarandás a enfeitar o caminho de casa, nem a voz que me alimentava de poesia, nem a tua rua, a tua rua, a tua rua.
Dou voltas pela cidade onde os boémios encenaram na noite anterior. Há vestígios de alegria triste nas beatas coladas ao chão, nas garrafas mal bebidas, nos becos de onde saem gatos ariscos, nas cordas com roupa a pingar, no desalinho dos poucos com que me cruzo, eles a acabar, eu a começar, na manhã de chuva, a entrevista que continua, Celeste, Deolinda e Emília à espera de desatar o que lhes ficou amarrado a vida toda, choram e riem com a mesma facilidade com que eu penso em ti, que é sempre, agarram-se às suas estórias como eu me prendo ao teu cheiro, que é permanente, querem ficar curadas de todo o mal, como eu às voltas na cidade a chamar pelo teu nome, pelo teu nome, pelo teu nome.
Passam os dias e os meses, tu no teu canto, as mulheres contra a parede branca, as perguntas que tenho medo de fazer, o zoom da objectiva demasiado perto, algo desfocado no tempo, peço para repetir, o barulho das romarias, as procissões solenes, as promessas à desgarrada, as gotas de suor da ceifa, os gritos dos partos, a inutilidade de guardar sonhos sem cabimento, porque a vida assim não quis, e não puderam ser como tu, Avita, que esperas no vestíbulo adornada de flores, com o teu anel de vidro brilhante, como um sol, que proibe qualquer gota infeliz de cair em cheio no teu coração, enquanto eu regresso à terra, acordada pelo ruído dos boémios, que começam a noite de temporal, como eu me acabo, depois destas estórias, parada no teu lugar vazio, no teu lugar vazio, no teu lugar vazio.
Tem como banda sonora Lijo - Alina Orlova do cd Laukinis Dingo Suo, 2008
Mulheres no canto de Avita
Opinião » 2010-11-04 » Né LadeirasCai chuva sobre a rua, os passos firmes que já foram, a folha do livro solta, o telhado da tua casa, as esplanadas vazias, o barco deixado na margem, o meu vestido desbotado, esta tristeza infinita que se entranha nas pedras, o medo de não encontrar outro rosto tão puro, a coragem para espalhar flores na dor funda, a diáspora numa jangada de papel, a fala aturdida e incoerente de quem ama, a luz feliz na tela do pintor, o canto de Avita escrito pelo poeta, a chuva sobre a tua casa, a tua casa, a tua casa.
Chovem lágrimas dos olhos de Deolinda, de Celeste, de Emília, coisas passadas, tantas penas, fome e frio, o sonho de ser professora, de ter uns sapatos, de fazer o enxoval em seda, tempos difíceis de heroínas anónimas, a máquina que lhes capta a expressão, a câmara que regista as suas vozes cansadas, os pés magoados na memória de Emília, a enxerga das olheiras de Celeste, o roxo da alma de Deolinda, imagens reflectidas nas pupilas sem brilho, num riso forçado, riscada em esboços de graffiti, a pensar no que Avita faria no meu lugar, com tantos sonhos que caem à tua porta, à tua porta, à tua porta.
Que luz se faz sobre estas vidas, os calcanhares em ferida de Emília depois de se atrever todo o dia calçada, o ventre de Celeste mal acordado pela noite passada no chão, a alma amarfanhada de Deolinda de tanta saudade mortal, como a minha, assim as delas, lucernas na negritude, sustendo balsamários de reserva, paredes húmidas a escorrer lutas corpo a corpo, sem a alegria do som das pulseiras de Avita atrás da cortina de linho, a paz que sente depois do riso, que eu preciso para enfrentar a tua janela, a tua janela, a tua janela.
A caixa de correio está vazia, as pessoas passam pela rua sem saber das mãos que tocaram nos plátanos, o rio corre porque é assim desde sempre, o guarda-chuva partido foi encostado à parede, ouve-se uma gargalhada em coro, afinal houve uma alegria que despontou em cada uma das mulheres. Celeste, Emília, Deolinda, riem em uníssono da sua miséria com uma dignidade que admiro. E tu, Avita? Junta-te a nós, diz do teu mundo e como o encontraste. Vieste como elas partiram, quase a pedir desculpa pelo incómodo, tantos trabalhos, mais outras incertezas, amuletos de coragem, mas valeu a pena, afirmam. Eu calo-me porque nesse tempo não havia jacarandás a enfeitar o caminho de casa, nem a voz que me alimentava de poesia, nem a tua rua, a tua rua, a tua rua.
Dou voltas pela cidade onde os boémios encenaram na noite anterior. Há vestígios de alegria triste nas beatas coladas ao chão, nas garrafas mal bebidas, nos becos de onde saem gatos ariscos, nas cordas com roupa a pingar, no desalinho dos poucos com que me cruzo, eles a acabar, eu a começar, na manhã de chuva, a entrevista que continua, Celeste, Deolinda e Emília à espera de desatar o que lhes ficou amarrado a vida toda, choram e riem com a mesma facilidade com que eu penso em ti, que é sempre, agarram-se às suas estórias como eu me prendo ao teu cheiro, que é permanente, querem ficar curadas de todo o mal, como eu às voltas na cidade a chamar pelo teu nome, pelo teu nome, pelo teu nome.
Passam os dias e os meses, tu no teu canto, as mulheres contra a parede branca, as perguntas que tenho medo de fazer, o zoom da objectiva demasiado perto, algo desfocado no tempo, peço para repetir, o barulho das romarias, as procissões solenes, as promessas à desgarrada, as gotas de suor da ceifa, os gritos dos partos, a inutilidade de guardar sonhos sem cabimento, porque a vida assim não quis, e não puderam ser como tu, Avita, que esperas no vestíbulo adornada de flores, com o teu anel de vidro brilhante, como um sol, que proibe qualquer gota infeliz de cair em cheio no teu coração, enquanto eu regresso à terra, acordada pelo ruído dos boémios, que começam a noite de temporal, como eu me acabo, depois destas estórias, parada no teu lugar vazio, no teu lugar vazio, no teu lugar vazio.
Tem como banda sonora Lijo - Alina Orlova do cd Laukinis Dingo Suo, 2008
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
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» 2024-03-08
» Maria Augusta Torcato
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