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Ícaro

Opinião  »  2010-11-18  »  Né Ladeiras

O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas.
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...
Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura

in Miguel Torga, Diário, XII
 

O labirinto tomou forma permanente, riscando os heróis inactivos do cenário e o Minotauro resoluto e faminto aguarda por quem há-de nascer. Mesmo a mais bela manhã de Outono, que de tanta cor podia suscitar um contorno de esperança, raciona a gestação do pensamento, qualquer que seja o bairro dos desperdícios. Estamos fechados atrás de janelas que o medo decretou. E não se ama. Enquanto caminho pela cidade dos fenómenos, vejo a sua fealdade forçada, imposta por um tempo de traições, paredes desbotadas, ruas sujas, uma estação de comboios a cheirar a frustração. Procuro por Dédalo, espero-lhe algum brio, só consegue mostrar uma imensa ruga, de um lado ao outro da boca, ou será a própria boca em forma de ruga pelos anos de ideias sem verbo. Já não anda. Já não voa. Em tempos houve em si um deus que dançava e sucumbiu. Mas tu não te salvaste? Quem caiu foi a inocência e que fizeste de então para cá? Sentei-me desatenta ao ruído e concentrada na voz que me pareceu soletrar Í-c-a-r-o. O teu voo retomado e sempre novo, adejante e frágil como o riso dos afectos, em breve me deixará à sorte de outro rumo súbito, só teu, que não inclui o meu canto ensaiado e ansioso de asas. Vejo-te à distância e ao longe, na mediação de distâncias, em que o longe e o perto, como o ausente e o presente, se tornam difusos, para que a tua imagem permaneça resguardada de qualquer dor. A tua presença que se estende acordada, traz-me de volta sítios e horas onde encontrei a melhor e maior verdade sobre o céu inacessível, numa busca cega e secreta. Voo só, pelo que tenho de teu no concreto da minha fragilidade. Conto as horas dos dias depois da tua queda, também minha, os números decrescentes na plataforma da estação, ao som de um saco de rodas atado por cordas, empurrado por uma mulher que pergunta por horários que já não se encontram em vigor. Tenta respostas junto do empregado do bar, do vendedor de jornais, do chefe da estação, dos diferentes passageiros que esperam por outros destinos. Olhe, desculpe, sabe a que horas chega este comboio? – e mostra um bilhete antigo, escrito à mão e rasgado nos cantos – é a primeira vês que vou para tal sítio, não sei se é aqui que pára e não sei o número da carruagem. Olham-na de lado, contrafeitos pelo incómodo que causa, o revisor mais humano deu-lhe alguma atenção, mas foi chamado à bilheteira pelo altifalante. A mulher continuou por ali, com o saco de rodas a chiar, a caminhar elegantemente, como se se passeasse numa grande avenida a ver montras. Olhe, desculpe, preciso de ir à casa de banho, importa-se de tomar conta da minha bagagem? – Com certeza, respondi, eu guardo-lha. Olhei curiosa para a mulher que me fitava com um sorriso enternecedor, quis fazer um parecido, porque achei que valia a pena, mas não saiu como tinha idealizado, demasiadas nebulosas desviaram-me a atenção, preciso – pensei – de um céu limpo. Quando me foquei no sorriso, a mulher já se tinha afastado. Observei-lhe a figura, baixa e magra, quantos anos teria? Deixou um rasto agradável, que não identifiquei, de um aroma em desuso no grande mercado perfumista, guardado na gaveta da cómoda, daqueles que ficam junto à roupa interior, o cabelo prateado brilhante projectado na sombra do chão, um rasgo de sorriso que ficou ainda perto, a voz aguda que ia perguntando, a quem se cruzava com ela, sobre a hora de chegada do comboio e o número da carruagem. Algo naquela estação começou a ruir, Ícaro vindo dos céus, asas escorridas a pensar num plano urgente que o salve. A mulher sorria sem uma nova aventura, sem outra cartografia de afectos e eu desejando-lhe outras asas de amor e de zanga, montada no silvo do riso e da raiva, a reclamar a autoria do dicionário dos voos e quedas, a jurar pelo belo e o efémero, sem o toque da precariedade da vida, sem a fragilidade incontornável da morte, assim pudéssemos todos cumprir a nossa finalidade no rasto das contingências. Aqui, como noutro tempo, o mesmo labirinto de trajectórias, o projecto de voo em fase experimental, a construção de asas que cada um tenta, em que céu, sobre que mar, quase a fundir com o calor que necessitamos dos outros, para cair incrédulos, com o coração entristecido por não termos chegado perto do que queríamos. A mulher regressou de braço dado com um bombeiro, que lhe dizia, vamos para casa, mãe… a sua viagem foi há muito tempo.

Ícaro, agora só tu eu. Até onde?
 

Música: Ikarus - Touched the Sun (Touch the Sun, 2001)

 

 

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