Trechos
Opinião » 2015-09-27 » Maria Augusta Torcato"Já não é nova. Já ultrapassou os cinquenta anos. Tem um filho ainda pequeno, que frequenta o primeiro ciclo. A maternidade foi tardia porque a vida assim quis, ou porque algo na vida a levou a adiar esse estado."
O encontro foi casual. Como são, presume-se, casuais todos os encontros que ocorrem no supermercado. Mesmo quando são programados, este espaço poderá ser o palco desses encontros, porventura, pela praticidade que oferece. Além do encontro, realizam-se compras indispensáveis para o funcionamento do corpo e de uma casa.
O encontro casual proporcionou a conversa, o destaque de um trecho de vida. Porque, parece mesmo, a vida é feita de trechos que se ligam entre si, cada um deles imiscuindo-se no anterior e no posterior.
- Olá, estás bem?
- Oh, desculpa, nem te vi. Não te reconheci. Desculpa. Já não nos víamos há tanto tempo. Então como estás?
- Não, não estou nada bem.
- Então? Ficaste onde, este ano?
- Fiquei longe, muito longe. E a notícia levou-me a baixo. Desabei. Estou doente.
- Então?
- Estou com uma depressão. Profunda. Não aguento. Não consigo, sequer, pensar. O meu filho, ainda pequeno, e eu a cento e quarenta quilómetros de distância. Ainda por cima, com um horário com dia e noite. Não aguentei. Desabei logo. Não consigo.
- Mas, como é possível, com tantos anos de serviço?
- Pois. Nunca pensei que aos cinquenta e tal anos isto estivesse a acontecer.
- Tentaste alguma permuta? Se estás doente, não consegues pedir aproximação de casa?
- Eu experimentei as permutas, mas não deu. Estou doente agora, estou de atestado. Sabes que, há muito tempo, muitos de nós se andam a arrastar e a enfrentar uma realidade muito difícil, mas eu aguentei até agora. Mas quando vi a colocação e fui à escola e soube o horário não consegui. Não consegui mesmo…
- Tens de ter calma…
- Não, não consigo. O meu filho é pequeno e precisa de mim. Quase trezentos quilómetros por dia. Nem consigo, quase, dormir em casa, porque também tenho noite. Não consigo. Além do esforço, do cansaço, pago para trabalhar. Não ganhamos o suficiente para isto. Não consigo.
- Tens de ter calma e ver o que é melhor para ti e para a tua família. A tua saúde está primeiro.
- Pois, mas a distância aumenta, a cada ano e a cada concurso… como aumenta a insegurança e diminui a esperança e a coragem. Eu não acredito que isto está a acontecer. Mas está. Não consigo. Não consigo mesmo! Perdi a força! Qualquer dia ninguém quer ser professor. Vais ver! O que nos têm feito!
- Sim…. – e as palavras de retorno não vinham, não se encontravam as palavras certas para melhorar ou confortar. Não.
Já não é nova. Já ultrapassou os cinquenta anos. Tem um filho ainda pequeno, que frequenta o primeiro ciclo. A maternidade foi tardia porque a vida assim quis, ou porque algo na vida, como a insegurança no trabalho ou a ausência de uma rede de suporte familiar, a levou a adiar esse estado. Esperou por mais estabilidade. Que, afinal, não veio.
Este é um trecho de uma vida que é réplica de outros trechos de vidas. De muita gente. De demasiada gente. Diz-se que o sonho comanda a vida. E quando os sonhos são roubados e destruídos? Estes trechos de vida que outros trechos produzem? Não é possível apagar nenhum trecho …
Trechos
Opinião » 2015-09-27 » Maria Augusta TorcatoJá não é nova. Já ultrapassou os cinquenta anos. Tem um filho ainda pequeno, que frequenta o primeiro ciclo. A maternidade foi tardia porque a vida assim quis, ou porque algo na vida a levou a adiar esse estado.
O encontro foi casual. Como são, presume-se, casuais todos os encontros que ocorrem no supermercado. Mesmo quando são programados, este espaço poderá ser o palco desses encontros, porventura, pela praticidade que oferece. Além do encontro, realizam-se compras indispensáveis para o funcionamento do corpo e de uma casa.
O encontro casual proporcionou a conversa, o destaque de um trecho de vida. Porque, parece mesmo, a vida é feita de trechos que se ligam entre si, cada um deles imiscuindo-se no anterior e no posterior.
- Olá, estás bem?
- Oh, desculpa, nem te vi. Não te reconheci. Desculpa. Já não nos víamos há tanto tempo. Então como estás?
- Não, não estou nada bem.
- Então? Ficaste onde, este ano?
- Fiquei longe, muito longe. E a notícia levou-me a baixo. Desabei. Estou doente.
- Então?
- Estou com uma depressão. Profunda. Não aguento. Não consigo, sequer, pensar. O meu filho, ainda pequeno, e eu a cento e quarenta quilómetros de distância. Ainda por cima, com um horário com dia e noite. Não aguentei. Desabei logo. Não consigo.
- Mas, como é possível, com tantos anos de serviço?
- Pois. Nunca pensei que aos cinquenta e tal anos isto estivesse a acontecer.
- Tentaste alguma permuta? Se estás doente, não consegues pedir aproximação de casa?
- Eu experimentei as permutas, mas não deu. Estou doente agora, estou de atestado. Sabes que, há muito tempo, muitos de nós se andam a arrastar e a enfrentar uma realidade muito difícil, mas eu aguentei até agora. Mas quando vi a colocação e fui à escola e soube o horário não consegui. Não consegui mesmo…
- Tens de ter calma…
- Não, não consigo. O meu filho é pequeno e precisa de mim. Quase trezentos quilómetros por dia. Nem consigo, quase, dormir em casa, porque também tenho noite. Não consigo. Além do esforço, do cansaço, pago para trabalhar. Não ganhamos o suficiente para isto. Não consigo.
- Tens de ter calma e ver o que é melhor para ti e para a tua família. A tua saúde está primeiro.
- Pois, mas a distância aumenta, a cada ano e a cada concurso… como aumenta a insegurança e diminui a esperança e a coragem. Eu não acredito que isto está a acontecer. Mas está. Não consigo. Não consigo mesmo! Perdi a força! Qualquer dia ninguém quer ser professor. Vais ver! O que nos têm feito!
- Sim…. – e as palavras de retorno não vinham, não se encontravam as palavras certas para melhorar ou confortar. Não.
Já não é nova. Já ultrapassou os cinquenta anos. Tem um filho ainda pequeno, que frequenta o primeiro ciclo. A maternidade foi tardia porque a vida assim quis, ou porque algo na vida, como a insegurança no trabalho ou a ausência de uma rede de suporte familiar, a levou a adiar esse estado. Esperou por mais estabilidade. Que, afinal, não veio.
Este é um trecho de uma vida que é réplica de outros trechos de vidas. De muita gente. De demasiada gente. Diz-se que o sonho comanda a vida. E quando os sonhos são roubados e destruídos? Estes trechos de vida que outros trechos produzem? Não é possível apagar nenhum trecho …
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
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