Um conto breve para o natal possível*
Opinião » 2020-12-19 » José Mota Pereira
Parti naquela noite de Primavera em que os mais velhos organizaram quase em segredo as festas de Santa Iria. No largo da igreja de Tagarra, saíram canções antigas do acordeão do Abel Trancas e dançou-se clandestinamente valsas quase esquecidas.
Em todos os lugares do Mundo, aplica-se há cinquenta anos a Lei Suprema da Civilização. Em defesa da higiene social vital para a Sociedade Organizada, foram proibidos todos os contactos afectivos. Os beijos e abraços são severamente punidos e as crianças passaram a ser concebidas nos Laboratórios Nacionais, apenas por inseminação artificial e de acordo com a programação e planificação racional dos Institutos Demográficos Nacionais.
Foi contra este mundo em que nasci que decidi lutar. Ansiava juntar-me à Resistência. Naquela noite, dezassete anos feitos, meti-me ao caminho. Só o velho João do Poço, o mais velho dos velhos da aldeia, sabia da minha decisão. Foi ele, quase centenário, quem me falou pela primeira vez sobre beijos e abraços livres. E contava tantas histórias de amor entre seres humanos.
Tantas vezes o procurei para ouvir as suas histórias de um outro tempo! Foi ele quem me falou da Resistência: Homens e Mulheres, clandestinos, lutando nas montanhas pela abolição dessa Lei Suprema que nos roubava a humanidade. Por isso nessa noite parti da aldeia. Caminhei mais de três dias em que apenas comi do queijo seco do leite das cabras da aldeia. Encontrei-os no acampamento, nas montanhas, como o velho João do Poço me orientou.
Apresentei-me. Sou Ana, de Tagarra.
Receberam-me. Matei a fome e a sede. Pedi armas, mas não havia armas. Foi aí que aprendi como é diferente esta guerra. Faz-se das danças, músicas e poemas que não deixamos morrer.
Aqui falamos de amor, ternura e abraços. Espalhamos pelos povoados papéis com palavras a gritar vida.
Não sei se vamos vencer, mas hoje acordei feliz. Ontem jantei e fui passear com o Rafael até à beira rio. Pedi-lhe um beijo (nunca tinha beijado assim). Soube bem. Deitámos os corpos junto à margem e ficámos unidos noite fora.
Fomos livres como as palavras dos poetas nos tais papéis que costumamos espalhar.
Pela manhã demos um abraço. Um abraço subversivo. Disse-me a lua cheia, antes da manhã chegar, vou ser a primeira mãe no acampamento. Nascerá lá para Dezembro e será o filho do amor de gente.
* Conto inédito escrito em 2015 adaptado em Dezembro de 2020
Um conto breve para o natal possível*
Opinião » 2020-12-19 » José Mota PereiraParti naquela noite de Primavera em que os mais velhos organizaram quase em segredo as festas de Santa Iria. No largo da igreja de Tagarra, saíram canções antigas do acordeão do Abel Trancas e dançou-se clandestinamente valsas quase esquecidas.
Em todos os lugares do Mundo, aplica-se há cinquenta anos a Lei Suprema da Civilização. Em defesa da higiene social vital para a Sociedade Organizada, foram proibidos todos os contactos afectivos. Os beijos e abraços são severamente punidos e as crianças passaram a ser concebidas nos Laboratórios Nacionais, apenas por inseminação artificial e de acordo com a programação e planificação racional dos Institutos Demográficos Nacionais.
Foi contra este mundo em que nasci que decidi lutar. Ansiava juntar-me à Resistência. Naquela noite, dezassete anos feitos, meti-me ao caminho. Só o velho João do Poço, o mais velho dos velhos da aldeia, sabia da minha decisão. Foi ele, quase centenário, quem me falou pela primeira vez sobre beijos e abraços livres. E contava tantas histórias de amor entre seres humanos.
Tantas vezes o procurei para ouvir as suas histórias de um outro tempo! Foi ele quem me falou da Resistência: Homens e Mulheres, clandestinos, lutando nas montanhas pela abolição dessa Lei Suprema que nos roubava a humanidade. Por isso nessa noite parti da aldeia. Caminhei mais de três dias em que apenas comi do queijo seco do leite das cabras da aldeia. Encontrei-os no acampamento, nas montanhas, como o velho João do Poço me orientou.
Apresentei-me. Sou Ana, de Tagarra.
Receberam-me. Matei a fome e a sede. Pedi armas, mas não havia armas. Foi aí que aprendi como é diferente esta guerra. Faz-se das danças, músicas e poemas que não deixamos morrer.
Aqui falamos de amor, ternura e abraços. Espalhamos pelos povoados papéis com palavras a gritar vida.
Não sei se vamos vencer, mas hoje acordei feliz. Ontem jantei e fui passear com o Rafael até à beira rio. Pedi-lhe um beijo (nunca tinha beijado assim). Soube bem. Deitámos os corpos junto à margem e ficámos unidos noite fora.
Fomos livres como as palavras dos poetas nos tais papéis que costumamos espalhar.
Pela manhã demos um abraço. Um abraço subversivo. Disse-me a lua cheia, antes da manhã chegar, vou ser a primeira mãe no acampamento. Nascerá lá para Dezembro e será o filho do amor de gente.
* Conto inédito escrito em 2015 adaptado em Dezembro de 2020
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia » 2024-04-10 » Jorge Carreira Maia Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. |
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
|
Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
» 2024-04-10
» Jorge Carreira Maia
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia |