Janela mágica
Opinião » 2013-07-19 » Paulo Simões
Depende dos olhos que veem, dos olhos que observam, ou dos olhos que nada veem. Enfim, depende de nós. Na minha opinião, basta que prestemos atenção ao mundo que nos rodeia.
Nesse sentido a minha janela é mágica. E não, não falo da TV. Com a preciosa ajuda do jogo de luzes que se cria entre exterior e interior, de reflexos e sombras. E apelando à cumplicidade da claridade do dia e a uma pequenina cortina acastanhada, confesso, consigo observar a minha rua estando de fora. Tão perto e tão longe. A proximidade permite-me uma visão privilegiada com pormenores de alta definição. E a distância de segurança fornece-me a invisibilidade necessária que o pudor e a discrição aconselham. Seja como for, e confissões aparte, o mundo que me chega através desta minha janela mágica, prende a minha atenção.
A velhota seguia tão devagar! Quase não andava. Arrastava os pés. Toda de preto com a cabeça afundada num lenço que mal deixava ver-lhe os olhos. Por pouco não se encostou a mim. Parou um nadinha antes. Encostei-me também. Escondido, com medo que ela me visse. Quase lhe senti a pulsação. Segurou-se à parede com a mão direita e respirou fundo. O ar quente não ajuda. Assim como não ajuda se estiver muito frio, penso eu. A partir de uma certa idade, diga-se, nada ajuda. Fez-me lembrar a minha avó. Recordo a minha avó sempre vestida de preto. Anos a fio de luto. Consigo perceber-lhe os sulcos cavados na pele. Essa pele enrugada que mais parece um tamanho XL num corpo XS. E de tão curvada que vai, já só vê as pontas dos pés. Talvez seja um mecanismo de autodefesa para prevenir alguma queda, quem sabe... – Vê onde pões os pés! – Lembro de quando era pequeno e a minha mãe procurava corrigir as minhas distrações. – Depois quem paga são os joelhos. – E as calças todas impecavelmente forradas com joelheiras. Quanto mais olho para ela a descer a rua, mais me deixo cair naquele negrume enlutado. Luto é uma palavra pequena mas que pesa toneladas. Interrogo-me que propósito serve? Mostrar tristeza? Revelar aos outros a nossa dor? Serve para que todos vejam que respeitamos as memórias daqueles que outrora amamos?
Embora a reflexão seja curta, imediatamente me apercebo que é muito mais do que isso. Ou parece-me a mim que assim seja. Não se pede aos outros que apenas o observem. Apela-se para que de algum modo o partilhem. Um fardo partilhado será sempre mais fácil de carregar. E nesse sentido, o luto traz consigo um pedido. A súplica é-nos lançada para que o partilhemos, registemos e validemos. Ao fim e ao cabo, o luto exige a nossa validação. É isso! Como se a dor alheia necessitasse de ser confirmada por todos.
Curioso é, como apesar de tudo e observando a velhota enlutada seguir o seu caminho penosamente, continuo a sentir que o luto é antes de qualquer outra coisa, pessoal e intransmissível. E enquanto num ápice fico colado à TV e ao resumo do futebol da noite anterior, as palavras ficam de alguma forma coladas a mim. Sem dúvida alguma… pessoal e intransmissível. mrp@sapo.pt
Janela mágica
Opinião » 2013-07-19 » Paulo SimõesDepende dos olhos que veem, dos olhos que observam, ou dos olhos que nada veem. Enfim, depende de nós. Na minha opinião, basta que prestemos atenção ao mundo que nos rodeia.
Nesse sentido a minha janela é mágica. E não, não falo da TV. Com a preciosa ajuda do jogo de luzes que se cria entre exterior e interior, de reflexos e sombras. E apelando à cumplicidade da claridade do dia e a uma pequenina cortina acastanhada, confesso, consigo observar a minha rua estando de fora. Tão perto e tão longe. A proximidade permite-me uma visão privilegiada com pormenores de alta definição. E a distância de segurança fornece-me a invisibilidade necessária que o pudor e a discrição aconselham. Seja como for, e confissões aparte, o mundo que me chega através desta minha janela mágica, prende a minha atenção.
A velhota seguia tão devagar! Quase não andava. Arrastava os pés. Toda de preto com a cabeça afundada num lenço que mal deixava ver-lhe os olhos. Por pouco não se encostou a mim. Parou um nadinha antes. Encostei-me também. Escondido, com medo que ela me visse. Quase lhe senti a pulsação. Segurou-se à parede com a mão direita e respirou fundo. O ar quente não ajuda. Assim como não ajuda se estiver muito frio, penso eu. A partir de uma certa idade, diga-se, nada ajuda. Fez-me lembrar a minha avó. Recordo a minha avó sempre vestida de preto. Anos a fio de luto. Consigo perceber-lhe os sulcos cavados na pele. Essa pele enrugada que mais parece um tamanho XL num corpo XS. E de tão curvada que vai, já só vê as pontas dos pés. Talvez seja um mecanismo de autodefesa para prevenir alguma queda, quem sabe... – Vê onde pões os pés! – Lembro de quando era pequeno e a minha mãe procurava corrigir as minhas distrações. – Depois quem paga são os joelhos. – E as calças todas impecavelmente forradas com joelheiras. Quanto mais olho para ela a descer a rua, mais me deixo cair naquele negrume enlutado. Luto é uma palavra pequena mas que pesa toneladas. Interrogo-me que propósito serve? Mostrar tristeza? Revelar aos outros a nossa dor? Serve para que todos vejam que respeitamos as memórias daqueles que outrora amamos?
Embora a reflexão seja curta, imediatamente me apercebo que é muito mais do que isso. Ou parece-me a mim que assim seja. Não se pede aos outros que apenas o observem. Apela-se para que de algum modo o partilhem. Um fardo partilhado será sempre mais fácil de carregar. E nesse sentido, o luto traz consigo um pedido. A súplica é-nos lançada para que o partilhemos, registemos e validemos. Ao fim e ao cabo, o luto exige a nossa validação. É isso! Como se a dor alheia necessitasse de ser confirmada por todos.
Curioso é, como apesar de tudo e observando a velhota enlutada seguir o seu caminho penosamente, continuo a sentir que o luto é antes de qualquer outra coisa, pessoal e intransmissível. E enquanto num ápice fico colado à TV e ao resumo do futebol da noite anterior, as palavras ficam de alguma forma coladas a mim. Sem dúvida alguma… pessoal e intransmissível. mrp@sapo.pt
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
» Hélder Dias
O Flautista de Hamelin... |
» 2024-03-08
» Maria Augusta Torcato
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» 2024-03-18
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» Pedro Ferreira
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