Aquele olhar
Opinião » 2014-03-07 » Paulo Simões
Há expressões que nunca esquecemos.
Por mais anos que passem, existem momentos que ficam gravados em nós de tal forma permanente, que jamais se apagam.
Por vezes são apenas segundos. Ou partes de segundos. Fracções. Por vezes não existem palavras, são apenas olhares. Quer dizer, na maior parte das vezes não existem palavras de todo. São simplesmente olhos que nos falam. Com expressões de tal modo claras e exactas, que não deixam margem para dúvidas. É impressionante como há rugas que nos dizem mais sem falar do que todas as palavras do mundo. Pupilas que se expandem e contraem atingindo-nos com uma clareza telepática perfeita. Dizendo tudo sem falar. E são esses olhares e essas rugas que jamais esqueceremos por mais anos que vivamos.
Diz-se que o ser humano consegue fazer milhares de expressões diferentes apenas com ligeiras alterações musculares da face. Ao contrário dos outros animais, a nossa capacidade de exprimir sentimentos diferentes fazendo apenas uso de subtis modificações na face é absolutamente assombrosa. Mexendo sobrancelhas, bochechas, pálpebras, olhos, lábios, narinas, testa… são infinitas as possibilidades de tudo dizermos sem usarmos sons. Exprimimos estados de alma tão diversos como mágoa, compaixão, alegria, amor, dor, entusiasmo, enfado, cansaço, medo, tristeza, apreensão… tudo nos é possível dizer apenas com a face.
Naquele triste dia de final de Inverno foi assim…
Encontrávamo-nos ali na mais dura das missões. Não me recordo propriamente se chovia ou se o sol brilhava mas tenho presente a ideia clara de que o dia me pareceu triste. Sentia o mundo estranhamente pesado, como que a viver connosco aquelas horas difíceis. Debatíamo-nos na altura em família com um caso grave de saúde que nos arrebatou e nos ultrapassou a todos de forma fulminante. E naquele preciso momento aguardávamos pela nossa oportunidade. Sentados num banco, entreolhando-nos e procurando forças uns nos outros. Não havia muito mais que pudéssemos fazer a não ser esperar. Hoje olhando para trás, dá-me a sensação de que aquele corredor gelado parecia não ter fim. Atafulhado de gente que estava, um ruído que doía, a impessoalidade gelada era tal que nos votava a um abandono cruel. O corredor do medo. Pelo menos é assim que o recordo.
A nossa missão ali era simples. Conseguir cinco minutos de atenção. Mas como nos metemos ao caminho por nossa conta e risco, assim que cá pela terra nos explicaram mais ou menos do que se tratava, nem esses míseros cinco minutinhos tínhamos ainda garantidos. Será que iríamos conseguir? Será que não? Naquelas horas de incerteza, o desfecho podia ter sido uma autêntica viagem à Senhora da Asneira. Felizmente para nós, nem sempre as coisas correm mal. E neste caso, valeu muito a pena.
Sentados, aguardávamos. O local, Santa Maria. Naquele dia em especial, pareceu-me um mundo. O movimento fervilhante habitual, por si só, chega para assustar. E assustados que já estávamos, conscientes da gravidade da situação, pior. Recordo que ainda assim, consigo dizer a determinada altura com alguma dose de confiança, em resposta a um desesperado olhar de súplica na minha direcção, - Vai tudo correr bem. Tenho certeza. Não consigo explicar mas sinto que alguma coisa me diz isso. Tens que ser forte mas mantém a calma. – Confesso que não tenho certeza de na altura ter ouvido qualquer voz a dizer-me o que quer que fosse, mas foi o melhor que me saiu.
Entretanto, e para acabar com a nossa ansiedade que por aquela altura quase nos matava a todos, eis que finalmente chega a nossa janela de oportunidade. Aquela por que tanto aguardávamos. De pé, com as pernas ligeiramente vacilantes mas com a coragem necessária que o momento exigia, lembro-me de esticar o braço. Passei-lhe os exames e esperei pelo veredicto. Não minto se vos disser que existem segundos que conseguem conter em si mesmos toda a eternidade. A sério, porque aqueles foram mesmo assim. Aqueles segundos que mediaram entre o homem da bata pegar no envelope e mergulhar no problema, para depois levantar de novo a cabeça e olhar de volta para mim, foram eternos. De tal modo, que por vezes me parece que ainda espero por aquele olhar. Já se passaram anos e ainda hoje tem dias em que de algum modo me sinto preso naquele momento. À espera. A vida toda ficou ali. Presa, num segundo.
O que aconteceu a seguir foi simples. Apenas um olhar. Mas um olhar… que nunca mais esquecerei.
mrp@sapo.pt
Aquele olhar
Opinião » 2014-03-07 » Paulo SimõesHá expressões que nunca esquecemos.
Por mais anos que passem, existem momentos que ficam gravados em nós de tal forma permanente, que jamais se apagam.
Por vezes são apenas segundos. Ou partes de segundos. Fracções. Por vezes não existem palavras, são apenas olhares. Quer dizer, na maior parte das vezes não existem palavras de todo. São simplesmente olhos que nos falam. Com expressões de tal modo claras e exactas, que não deixam margem para dúvidas. É impressionante como há rugas que nos dizem mais sem falar do que todas as palavras do mundo. Pupilas que se expandem e contraem atingindo-nos com uma clareza telepática perfeita. Dizendo tudo sem falar. E são esses olhares e essas rugas que jamais esqueceremos por mais anos que vivamos.
Diz-se que o ser humano consegue fazer milhares de expressões diferentes apenas com ligeiras alterações musculares da face. Ao contrário dos outros animais, a nossa capacidade de exprimir sentimentos diferentes fazendo apenas uso de subtis modificações na face é absolutamente assombrosa. Mexendo sobrancelhas, bochechas, pálpebras, olhos, lábios, narinas, testa… são infinitas as possibilidades de tudo dizermos sem usarmos sons. Exprimimos estados de alma tão diversos como mágoa, compaixão, alegria, amor, dor, entusiasmo, enfado, cansaço, medo, tristeza, apreensão… tudo nos é possível dizer apenas com a face.
Naquele triste dia de final de Inverno foi assim…
Encontrávamo-nos ali na mais dura das missões. Não me recordo propriamente se chovia ou se o sol brilhava mas tenho presente a ideia clara de que o dia me pareceu triste. Sentia o mundo estranhamente pesado, como que a viver connosco aquelas horas difíceis. Debatíamo-nos na altura em família com um caso grave de saúde que nos arrebatou e nos ultrapassou a todos de forma fulminante. E naquele preciso momento aguardávamos pela nossa oportunidade. Sentados num banco, entreolhando-nos e procurando forças uns nos outros. Não havia muito mais que pudéssemos fazer a não ser esperar. Hoje olhando para trás, dá-me a sensação de que aquele corredor gelado parecia não ter fim. Atafulhado de gente que estava, um ruído que doía, a impessoalidade gelada era tal que nos votava a um abandono cruel. O corredor do medo. Pelo menos é assim que o recordo.
A nossa missão ali era simples. Conseguir cinco minutos de atenção. Mas como nos metemos ao caminho por nossa conta e risco, assim que cá pela terra nos explicaram mais ou menos do que se tratava, nem esses míseros cinco minutinhos tínhamos ainda garantidos. Será que iríamos conseguir? Será que não? Naquelas horas de incerteza, o desfecho podia ter sido uma autêntica viagem à Senhora da Asneira. Felizmente para nós, nem sempre as coisas correm mal. E neste caso, valeu muito a pena.
Sentados, aguardávamos. O local, Santa Maria. Naquele dia em especial, pareceu-me um mundo. O movimento fervilhante habitual, por si só, chega para assustar. E assustados que já estávamos, conscientes da gravidade da situação, pior. Recordo que ainda assim, consigo dizer a determinada altura com alguma dose de confiança, em resposta a um desesperado olhar de súplica na minha direcção, - Vai tudo correr bem. Tenho certeza. Não consigo explicar mas sinto que alguma coisa me diz isso. Tens que ser forte mas mantém a calma. – Confesso que não tenho certeza de na altura ter ouvido qualquer voz a dizer-me o que quer que fosse, mas foi o melhor que me saiu.
Entretanto, e para acabar com a nossa ansiedade que por aquela altura quase nos matava a todos, eis que finalmente chega a nossa janela de oportunidade. Aquela por que tanto aguardávamos. De pé, com as pernas ligeiramente vacilantes mas com a coragem necessária que o momento exigia, lembro-me de esticar o braço. Passei-lhe os exames e esperei pelo veredicto. Não minto se vos disser que existem segundos que conseguem conter em si mesmos toda a eternidade. A sério, porque aqueles foram mesmo assim. Aqueles segundos que mediaram entre o homem da bata pegar no envelope e mergulhar no problema, para depois levantar de novo a cabeça e olhar de volta para mim, foram eternos. De tal modo, que por vezes me parece que ainda espero por aquele olhar. Já se passaram anos e ainda hoje tem dias em que de algum modo me sinto preso naquele momento. À espera. A vida toda ficou ali. Presa, num segundo.
O que aconteceu a seguir foi simples. Apenas um olhar. Mas um olhar… que nunca mais esquecerei.
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