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O Relógio de Cuco - josé ricardo costa

Opinião  »  2023-05-15 

Sabe-se lá porquê, há pequenos nadas que, embora diluídos na espuma dos dias, solidificam-se para sempre na memória. Há muito tempo, nem adulto sou, estou sentado na barbearia do Escudeiro, ao lado de um senhor de adiantada idade, ar elegante, fato branco, bem-falante, que vai revelando o seu fascínio pela ordem, tranquilidade e limpeza da Suíça, sem faltar a clássica referência ao papel ou beata que nunca aparecem no chão.

Mais de quarenta anos depois, faço a mochila para seis dias nesse cantinho bem arrumado no centro da Europa, menos de metade de Portugal, e que tem tanto de país como de ideia. Levo, como bagagem mental, relógios, chocolates, indústria farmacêutica, queijos, bancos, Davos, sedes de organizações, cantões, referendos, lagos, montanha (incluindo a Mágica), vacas, comboios a atravessar túneis, esqui, festival de Jazz de Montreux, o jovem Nietzsche a nadar com Wagner no lago de Lucerna para repousar das suas aulas em Basileia. Seis dias depois, trago os bolsos vazios pela ousadia de pisar um país não aconselhável a ordenados portugueses e onde puxar do cartão para pagar é sempre um momento de auto-flagelação. Mas com a sensação de ter valido a pena e, como dizem os portugueses, antes para ali do que para a farmácia, que também é muitas vezes sinónimo de Suíça. E por falar em dinheiro, vale a pena levantar algum só pelo prazer de ver as notas mais bonitas do mundo.

Não se pode explicar um país por seis dias em três cidades (Genebra, Basileia, Berna), uma cidadezinha (Thun), e os percursos de comboio entre elas. É como ousar conhecer uma loja fechada só pelo que se vê montra. Seja como for, ter estado é diferente de não ter estado e seis dias é mais que dia nenhum. Mas foi já fora dela que melhor percebi a Suíça, pousando o pé em Lisboa e, no dia seguinte, em T. Novas, quando saio de casa para ir trabalhar, levando com um irritante ruído de fundo, montes de carros e ruas feitas para eles. Percebo então que já não estou na Suíça, mesmo tratando-se da “capital” (Berna) ou da segunda maior cidade (Genebra). Juro que estive no meio de largas avenidas a tirar fotografias, alheado da possibilidade de passar um carro e não apenas pessoas, bicicletas e eléctricos, estes, parte substancial da paisagem urbana (senti-me por vezes num documentário dos anos 30), com painéis em cada paragem para indicar o tempo de espera, sempre curto e com pontualidade suíça.

Seis dias depois, Suíça ficou para mim sinónimo de silêncio e tranquilidade, cidades grandes que são pequenas, rios e lagos cuja água é de uma transparência quase poética e que pode ser bebida em qualquer fonte pública. Diria por isso a um jovem português ser a Suíça o pior país do mundo para fazer Erasmus, havendo mais agitação em cem metros da Gran Vía ou La Latina do que em Genebra, Basileia ou Berna todas juntas. Belas cidades, diga-se, sobretudo Berna, pela qual me apaixonei e onde dei passeios que não esquecerei. E também com excelentes museus, não só pelos recheios (no Kunstmuseum de Basileia está o Cristo de Holbein diante do qual Dostoievski ia tendo um ataque epiléptico) mas também pelos edifícios e contextos paisagísticos, como é o caso da Fundação Beyeler e o Museum Tinguely, em Basileia, ou o Zentrum Paul Klee, em Berna. Não sei se por ser o país dos relógios terá um qualquer poder especial sobre o tempo, o que eu sei é que não me faltou tempo para ver bem mais do que esperaria.

Entretanto, eis o país ideal para um português com fobia à distância de casa. Aconteceu-me o mesmo que no Luxemburgo: entro num restaurante, hotel, ou museu, sendo elevada a possibilidade de ser atendido por portugueses como aqueles três funcionários da limpeza parados a conversar no meio de uma rua de Genebra. Conferenciando com alguns deles sobre como é viver na Suíça, senti alguma falta de entusiasmo e de amor ao país. O que me parece normal em jovens sedentos de selva urbana e para os quais não há diferença entre o dia e a noite. Que na Suíça também pouco se nota, mas pelas razões contrárias às das pulsões juvenis.

Há uma cena do The Third Man em que alguém pergunta a um assassino e traficante de droga como pode ser tão mau, obtendo a seguinte resposta: “Em Itália, durante os Bórgias, houve derramamento de sangue, terror, assassínios, mas produziram Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, país que vive há 500 anos em democracia e paz, o que foi produzido? O relógio de cuco”.

Pois, bem-vindos à Suíça. Mas, calma. Convém lembrar que foi aqui que surgiu o movimento Dadá ou os Young Gods. Em Berna, por acidente, entrei num enorme centro cultural anarquista, sentindo que estaria, sei lá, em Berlim. E de lá saíram Paul Klee, Alberto Giacometti ou Robert Walser. E o senhor da barbearia que me perdoe, o comboio (excelente, e até com carruagem para as crianças brincarem) que me levou de Genebra a Basileia, chegou com 5 minutos de atraso, sendo pedidas imensas desculpas. E, ainda que pouco, vi papéis e beatas no chão, embora talvez não se devam a suíços (como diria o Octávio Machado, sei bem o que estou a dizer), mas a quem ainda não percebeu que a Suíça não é um país, mas uma ideia que, ao contrário dos chocolates, relógios e medicamentos, não é de fácil exportação. Mas que eu acolho com simpatia, talvez por estar a envelhecer, mas também por nunca ter esquecido o relógio de cuco para o qual olhava fascinado na relojoaria do meu avô, muito antes sequer de existir a barbearia do Escudeiro que também já há muito deixou de existir.

 


 

 

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