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SEMPRE É UMA COMPANHIA - josé alves pereira

Opinião  »  2021-11-25  »  José Alves Pereira

" Foi a rádio que, anunciando o final de uma longa e escura noite, lançou aos ventos palavras em forma de senha poética."

Num destes dias, ocorreu-me passar os olhos pelo Fogo e as Cinzas, livro de contos do Manuel da Fonseca. Acabei relendo o que me serve para título desta crónica e pretexto para uma incursão por algumas recordações ligadas ao aparelho de rádio que um dia, pelos anos 50, entrou lá em casa. Comecemos, resumidamente, pelos trilhos do conto.

 1. Na aldeia de Alcaria havia uma venda para avios de meia dúzia de fregueses, a maioria ceifeiros. Quem mandava na loja era a mulher do António Barrasquinha, conhecido por Batola. Ela alta e seca de carnes e paciências, ele meio atarracado e dado à preguiça, pouco se atardava nos negócios da venda. A sua vida é modorrenta. Só a lembrança do seu amigo Rata o despertava da letargia quando este lhe trazia notícias de Ourique, Messejana e até Beja, que era outro mundo. Entretanto, o Rata apareceu morto na ribeira, segundo se diz porque tolhido pelo reumatismo, deixara de correr os montes, ficando enclausurado no acanhado mundo da sua casa.

Certo dia, aparecem na aldeia dois senhores, vindos de automóvel. Entram na venda para molhar a garganta e verificam que há ali uma ligação eléctrica pendurada do tecto. Convencem o Batolas, sob o olhar e o comentário reprovador da mulher, a ficar com um rádio, à experiência, durante um mês. A clientela passa a juntar-se ali, ouvem música e notícias, notícias da guerra e vão-se habituando. “Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia”. A venda transforma-se num lugar de encontros e de festa. “Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava !”, diziam. Decorridos os trinta dias os senhores regressam. Os ceifeiros entristecem: no dia seguinte, o negrume e a estreiteza da vida voltariam. Quando o Batola se prepara para desligar o rádio, vê aparecer a mulher que lhe diz :

 Olha… Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto.”

 2. Em 1950, os meus pais adquiriram na casa Veríssimo Pais, ali à rua da Levada, um aparelho de rádio daqueles que vemos hoje com um sorriso. Tinha três botões, um lateral para a busca das ondas e dois na frente, para regular o volume e sintonizar o posto. Acendia-se, e no interior víamos as luzinhas das válvulas que tinham de aquecer para emitir sons. Como os vizinhos próximos não tinham rádio, colocava-se este na janela da rua e ali se juntavam para escutar as gloriosas vitórias lusas do hóquei patins no Torneio de Montreux, as empolgantes chegadas da volta a Portugal ou os relatos da “bola” no Domingo à tarde. Aos fins de semana, quando o tempo ia invernoso o meu pai vestia o pijama, punha o rádio sobre a mesa da cozinha e ligava-o a uma ficha irmanada com a lâmpada dependurada do tecto. Afastava um pouco o aparelho para dar espaço a um livro do Aquilino, Hemingway, Redol ou outros requisitados na biblioteca e que lhe iam preenchendo as tardes e os serões. Dos adereços constava também um copo de água – ao lanche bebia coisa menos insípida - a onça de tabaco Superior e o livro de mortalhas Conquistador com que ia enrolando os cigarros e acrescentando pontos à bronquite. Junte-se o isqueiro de metal provido de gasolina e uma torche incendiada pela chispa da pederneira.

Havia como que um ritual neste acomodamento. Em horas conhecidas, tentava ouvir as vozes que vinham de longe, trazendo notícias do Portugal escondido pela censura. Muitas vezes, a audição tinha pouco sucesso devido às intermitências, aos rugidos e zunidos com que o regime as tentava silenciar. Em 1958, com as esperanças presidenciais em Humberto Delgado, seguiam-se os resultados da fraude eleitoral. Além das cantorias dos artistas em voga acompanhavam-se as radionovelas: o Guarani, do José de Alencar ou O Miguel Strogoff, do Júlio Verne; os mais novos vibravam aos sábados com As aventuras dos cinco, da Enid Blyton; episódios demasiado curtos para a curiosidade juvenil. Aos domingos eram as histórias do Vasquinho e da Lelé protagonizadas pelo Vasco Santana e a Irene Velez e já agora, num apontamento lateral, também pela Elvira Velez que fazia de sogra. A curiosidade é que esta Elvira Velez viveu em Torres Novas entre os 6 e os 18 anos, onde se fez actriz, porque o seu pai fora empresário no velho Cine-Teatro Virginia.

Sentado com a minha mãe na borda da cama, era eu já crescidote, ouvi pela primeira vez o José Afonso no seu Menino d’oiro e No largo do Breu; “isto não se canta lá fora”, recordava-me ela. Um nervoso miudinho crescia em nós ao ouvir, após os repiques sonoros, “Fala a Rádio Portugal Livre, emissora ao serviço do povo, da democracia e da independência nacional”; era a voz do PCP emitindo a partir de um mundo longínquo, trazendo-nos palavras de resistência e esperança e onde escutámos Álvaro Cunhal e Maria Lamas pela primeira vez. Agora, o inusitado. Estávamos em Novembro de 1973. O país vivia um momento de grande agitação social e política. Liguei o aparelho e falava-se da campanha eleitoral para “eleição” de deputados à Assembleia Nacional fascista havida no anterior mês de Outubro. Eis senão quando… ouvi a minha própria voz . Reproduzia o fragmento de uma intervenção que havia feito numa sessão da CDE, em Tomar. Como era possível ? Quem a tinha gravado e enviado para tão longe ? Nunca o soube.

Foi a rádio que, anunciando o final de uma longa e escura noite, lançou aos ventos palavras em forma de senha poética que alguém ansiava ouvir para sair e fazer o que tinha que ser feito. Foi ainda a rádio que na manhã madrugadora seguinte nos clareou o Abril do dia mais exaltante das nossas vidas.

 

 

 

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