Timor, Portugal e o futebol - anabela santos
Opinião » 2021-07-13 » AnabelaSantos
Quase terminada a minha caminhada por Timor Lorosae, a ilha com a história e cultura escritas a sangue, tento fazer um balanço de todo o meu percurso vivido em Díli. Como em tudo na vida, há o bom e o menos bom, mas o resultado é, sem dúvida, positivo. Certeza tenho de que a minha vida ganhou uma nova rotina com mais sabor, sentimentos, conhecimentos e pensamentos.
Com um peso fortemente negativo é, sem dúvida, o facto de ter chegado a este lado do mundo com uma mala cheia de projectos para concretizar e não ter o conseguido devido à pandemia, que virou completamente o mundo do avesso.
Deixei a meio do percurso o voluntariado e o conhecimento do Timor profundo. As montanhas, os locais e as pessoas que transportam a verdadeira realidade do país. O povo Maubere que é feliz mesmo com tantas adversidades e com tantas carências materiais, que muitas vezes o obriga a tirar o sustento da própria terra mesmo que essa seja somente alguns metros de quintal. O povo que traz no rosto o sorriso inocente, principalmente as crianças que ainda são ingénuas e puras.
As cercas sanitárias entre distritos foram mantidas, durante meses, e os meus planos foram alterados.
Mas se, por um lado, o meu grande objectivo não foi atingido por todas as adversidades existentes, por outro, levo o coração cheio de bons momentos, amigos, conhecimentos e aprendizagens. Levo, também, a imagem de Díli como uma cidade feliz. É verdade que a primeira impressão é sempre dúbia e algo relutante. Contudo, acaba por se tornar amenizada e posteriormente doce, sentimento que já tinha experimentado, há cinco anos atrás, quando visitei a Ilha.
Recordarei para sempre a cidade onde há de tudo (habituamo-nos ao que existe): armazéns dos chineses; supermercados onde encontramos vários produtos portugueses e os característicos mercados, como o de Taibessi, Tasi Tolo ou Manleuana, onde se encontram os legumes geometricamente alinhados e as roupas de “marca” que fazem a alegria dos “malai” (“estrangeiro” em Tétum).
Passeando pelas ruas da cidade, também, há imagens que ficarão na minha memória para sempre, como a existência de dois países em Timor - o dos "ricos", maioritariamente dos “malai”, e o dos pobres, que são tantos e sem perspectiva de um futuro melhor.
O dia que começa muito cedo com o cantar dos galos, que cantam o dia todo: a anunciar a manhã, o meio-dia, a tarde. As mulheres que varrem diariamente e insistentemente os seus quintais, o som estrondoso da música dos carrinhos dos vendedores de frutas e legumes, os “ai-leba”, vendedores que de uma forma estoica carregam nos ombros fruta, galinhas, porcos ou flores que, no final do dia, depois de vendidos os produtos, lhes dão o sustento para a família.
Ao longo das ruas, nas bermas das estradas, os vendedores de frango, arroz, legumes e milho doce. As pessoas que, de início, não são muito expansivas com quem conhecem, mostrando uma certa timidez no olhar, mas sempre com um sorriso simpático, mas ao fim de algum conhecimento a desconfiança é substituida por uma relação muito acolhedora e amigável. Lembrarei Ananias, o ardina, António, o taxista, Dona Eufrásia e marido, os donos do “quiós”, Dona Perpétua e o “maun” Nel, que tomam contam da casa, Eta, a menina do café, Johny, o porteiro da escola, a senhora da reprografia, entre tantos outros.
Lembrarei a simpatia e educação. Na rua, no café, no supermercado, a frase mais ouvida é “Boa “tardi”, professora!”, como se o meu rosto denunciasse a minha profissão.
Na estrada, as motas que transportam uma família composta por quatro ou cinco pessoas com a naturalidade de um carro familiar e que, para além das pessoas, fazem o transporte, de uma forma completamente inexplicável (por mim) de televisões, portas, canos, colchões, ou seja, de todos os materiais possíveis e imaginários que fazem parte do nosso quotidiano.
Para além das motas, os transportes públicos: as microletes lentas, coloridas, com muita música e as angunas (tipo carrinha de caixa aberta), que transportam dezenas de pessoas sem qualquer protecção.
São tantas as coisas boas para recordar, mas também há muitas coisas negativas que falarei numa outra altura. No entanto, hoje, não posso deixar de referir o dia 4 de Abril em que Timor Leste, já enfrentando um preocupante surto de Covid-19, foi atingido por inundações e deslizamentos de terra devastadores, provocando um grande número de mortes, destruindo estradas, pontes e casas.
E, depois de ver que o texto já vai extenso, desculpem-me pelo atrevimento, mas ainda irei falar brevemente do tema que mais me impressionou nos últimos dias por toda a cidade de Díli: o amor dos timorenses pela selecção portuguesa.
No início do Euro 2020, as bandeiras de Portugal multiplicaram-se nas ruas da cidade, como noutros pontos do país, manifestando o amplo apoio à selecção portuguesa. Nunca irei conseguir transmitir por palavras o sentimento, a euforia e a ansiedade vividos antes, durante e depois dos jogos da selecção. Mesmo com a cidade em suposto confinamento, caravanas de carros e motas, com bandeiras de Portugal, a buzinar e a gritar “vivas a Portugal” ou a sua versão mais curta “Portu”, enchiam as ruas de Díli.
Fiquei a saber que muitos transformam o apoio em apostas, que, apesar das carências da maioria da população, chegam aos milhares de dólares, num país onde o salário mínimo ainda é de 115 dólares por mês. Outros aproveitam para fazer negócio, nomeadamente a venda de bandeiras nas ruas — Portugal, Alemanha e Itália são as dominante. Disse-me um taxista que a bandeira portuguesa é vendida por dez dólares e as das restantes selecções por três ou quatro dólares.
Senti-me envergonhada quando, um dia, ao sair de casa, de manhã, vejo uma bandeira enorme de Portugal no meu quintal que foi colocada pelos vizinhos timorenses e eu nada ... As bandeiras estão hasteadas em portões, em casas e até em árvores, confirmando o apoio que a selecção nacional tem no país. Não dormem os timorenses, não dormem os portugueses. A festa é total e a tristeza é muito grande no momento da derrota.
Não me senti em Portugal, pois apesar de no meu país se viver de forma entusiástica os jogos da selecção, nunca vi ou senti tanto orgulho e tanta confiança como em Díli. Eu era uma portuguesa insignificante entre eles.
Timor, Portugal e o futebol - anabela santos
Opinião » 2021-07-13 » AnabelaSantosQuase terminada a minha caminhada por Timor Lorosae, a ilha com a história e cultura escritas a sangue, tento fazer um balanço de todo o meu percurso vivido em Díli. Como em tudo na vida, há o bom e o menos bom, mas o resultado é, sem dúvida, positivo. Certeza tenho de que a minha vida ganhou uma nova rotina com mais sabor, sentimentos, conhecimentos e pensamentos.
Com um peso fortemente negativo é, sem dúvida, o facto de ter chegado a este lado do mundo com uma mala cheia de projectos para concretizar e não ter o conseguido devido à pandemia, que virou completamente o mundo do avesso.
Deixei a meio do percurso o voluntariado e o conhecimento do Timor profundo. As montanhas, os locais e as pessoas que transportam a verdadeira realidade do país. O povo Maubere que é feliz mesmo com tantas adversidades e com tantas carências materiais, que muitas vezes o obriga a tirar o sustento da própria terra mesmo que essa seja somente alguns metros de quintal. O povo que traz no rosto o sorriso inocente, principalmente as crianças que ainda são ingénuas e puras.
As cercas sanitárias entre distritos foram mantidas, durante meses, e os meus planos foram alterados.
Mas se, por um lado, o meu grande objectivo não foi atingido por todas as adversidades existentes, por outro, levo o coração cheio de bons momentos, amigos, conhecimentos e aprendizagens. Levo, também, a imagem de Díli como uma cidade feliz. É verdade que a primeira impressão é sempre dúbia e algo relutante. Contudo, acaba por se tornar amenizada e posteriormente doce, sentimento que já tinha experimentado, há cinco anos atrás, quando visitei a Ilha.
Recordarei para sempre a cidade onde há de tudo (habituamo-nos ao que existe): armazéns dos chineses; supermercados onde encontramos vários produtos portugueses e os característicos mercados, como o de Taibessi, Tasi Tolo ou Manleuana, onde se encontram os legumes geometricamente alinhados e as roupas de “marca” que fazem a alegria dos “malai” (“estrangeiro” em Tétum).
Passeando pelas ruas da cidade, também, há imagens que ficarão na minha memória para sempre, como a existência de dois países em Timor - o dos "ricos", maioritariamente dos “malai”, e o dos pobres, que são tantos e sem perspectiva de um futuro melhor.
O dia que começa muito cedo com o cantar dos galos, que cantam o dia todo: a anunciar a manhã, o meio-dia, a tarde. As mulheres que varrem diariamente e insistentemente os seus quintais, o som estrondoso da música dos carrinhos dos vendedores de frutas e legumes, os “ai-leba”, vendedores que de uma forma estoica carregam nos ombros fruta, galinhas, porcos ou flores que, no final do dia, depois de vendidos os produtos, lhes dão o sustento para a família.
Ao longo das ruas, nas bermas das estradas, os vendedores de frango, arroz, legumes e milho doce. As pessoas que, de início, não são muito expansivas com quem conhecem, mostrando uma certa timidez no olhar, mas sempre com um sorriso simpático, mas ao fim de algum conhecimento a desconfiança é substituida por uma relação muito acolhedora e amigável. Lembrarei Ananias, o ardina, António, o taxista, Dona Eufrásia e marido, os donos do “quiós”, Dona Perpétua e o “maun” Nel, que tomam contam da casa, Eta, a menina do café, Johny, o porteiro da escola, a senhora da reprografia, entre tantos outros.
Lembrarei a simpatia e educação. Na rua, no café, no supermercado, a frase mais ouvida é “Boa “tardi”, professora!”, como se o meu rosto denunciasse a minha profissão.
Na estrada, as motas que transportam uma família composta por quatro ou cinco pessoas com a naturalidade de um carro familiar e que, para além das pessoas, fazem o transporte, de uma forma completamente inexplicável (por mim) de televisões, portas, canos, colchões, ou seja, de todos os materiais possíveis e imaginários que fazem parte do nosso quotidiano.
Para além das motas, os transportes públicos: as microletes lentas, coloridas, com muita música e as angunas (tipo carrinha de caixa aberta), que transportam dezenas de pessoas sem qualquer protecção.
São tantas as coisas boas para recordar, mas também há muitas coisas negativas que falarei numa outra altura. No entanto, hoje, não posso deixar de referir o dia 4 de Abril em que Timor Leste, já enfrentando um preocupante surto de Covid-19, foi atingido por inundações e deslizamentos de terra devastadores, provocando um grande número de mortes, destruindo estradas, pontes e casas.
E, depois de ver que o texto já vai extenso, desculpem-me pelo atrevimento, mas ainda irei falar brevemente do tema que mais me impressionou nos últimos dias por toda a cidade de Díli: o amor dos timorenses pela selecção portuguesa.
No início do Euro 2020, as bandeiras de Portugal multiplicaram-se nas ruas da cidade, como noutros pontos do país, manifestando o amplo apoio à selecção portuguesa. Nunca irei conseguir transmitir por palavras o sentimento, a euforia e a ansiedade vividos antes, durante e depois dos jogos da selecção. Mesmo com a cidade em suposto confinamento, caravanas de carros e motas, com bandeiras de Portugal, a buzinar e a gritar “vivas a Portugal” ou a sua versão mais curta “Portu”, enchiam as ruas de Díli.
Fiquei a saber que muitos transformam o apoio em apostas, que, apesar das carências da maioria da população, chegam aos milhares de dólares, num país onde o salário mínimo ainda é de 115 dólares por mês. Outros aproveitam para fazer negócio, nomeadamente a venda de bandeiras nas ruas — Portugal, Alemanha e Itália são as dominante. Disse-me um taxista que a bandeira portuguesa é vendida por dez dólares e as das restantes selecções por três ou quatro dólares.
Senti-me envergonhada quando, um dia, ao sair de casa, de manhã, vejo uma bandeira enorme de Portugal no meu quintal que foi colocada pelos vizinhos timorenses e eu nada ... As bandeiras estão hasteadas em portões, em casas e até em árvores, confirmando o apoio que a selecção nacional tem no país. Não dormem os timorenses, não dormem os portugueses. A festa é total e a tristeza é muito grande no momento da derrota.
Não me senti em Portugal, pois apesar de no meu país se viver de forma entusiástica os jogos da selecção, nunca vi ou senti tanto orgulho e tanta confiança como em Díli. Eu era uma portuguesa insignificante entre eles.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
|
Avivar a memória - antónio gomes » 2024-02-22 » António Gomes Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento. Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa. |
Eleições, para que vos quero! - antónio mário santos » 2024-02-22 Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação. |
» 2024-02-28
» Hélder Dias
O Flautista de Hamelin... |
» 2024-03-08
» Maria Augusta Torcato
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato |
» 2024-03-18
» Hélder Dias
Eleições "livres"... |
» 2024-03-08
» Jorge Carreira Maia
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia |
» 2024-03-08
» Pedro Ferreira
A carne e os ossos - pedro borges ferreira |