O gajo de Benfica apaixonado pela alentejanita
Cultura » 2018-07-11
É uma gaiata de cintura fina, curvas generosas, redondinhas, sensuais: foi por ela que João Morais, curtido e calejado rocker da selva urbana de Benfica, se apaixonou, paixão improvável, uma luz que se acendeu numa noite de calmaria na campina alentejana. Subitamente, João empreendeu mudar de vida, sim, mudar de vida: trocar os decibéis brutais e alucinados dos verdes anos, aprender agora a moldar com as mãos a fragilidade e a graça feitas música, música estranha, a pedir os dedos em sincronia num ballet iluminado sobre um braço a dez vozes pontilhadas.
Quando Michel Giacometti percorreu tabernas e barbearias de Ourique e Odemira no início de 70, ele, um corso, doente dos pulmões em terapia de vida chegado a este país de doces manhãs, e registou as baladas indecifráveis do lendário Ti António Bento, ainda jovem, e dos últimos malteses e ganhões que percorriam feiras e despiques, viola a tiracolo, uma viola esquisita a tiracolo, pensou ter encontrado qualquer tesouro vindo de uma terra de ninguém, um tesouro arqueológico de difícil filiação. O corso já tinha andado antes por outros mediterrânios, até por Tras-os-Montes, mas nunca tinha visto nem ouvido nada parecido.
A viola campaniça era, no estertor daquele Alentejo danado o parente mais pobre da família de cordofones tradicionais portugueses: não tinha a beleza rendilhada nem o coração de uma amarantina ou de uma braguesa, nem a elegância burguesa de uma viola da terra açoriana. A campaniça era tosca, roufenha, de voz aramada, sem narrativas melódicas que não as tristes e cansadas melopeias sem princípio e sem fim, sempre mal amanhada, feita com o que havia à mão, o espelho da ascética pobreza de um Alentejo interior do interior, pobre, à parte, ele próprio, naquele triângulo rural dos montes e searas de Ourique, Odemira e Castro, um país à parte.
Perto da passagem do milénio, a campaniça estava praticamente extinta e o Ti António Bento, já velho, apresentado de feira em feira como troféu de um ou outro ansioso académico à procura de salvar o mundo: a graciosa campaniça, moça morena do sol terrível do sul, perdera o canto, salvavam-se ainda as encantadoras curvas de mulher antiga, madura como as amoras dos silvados em Agosto. Mas já não se viam bandoleiros e moinantes que a sabiam amar, num amor bruto, furtivo, de alimentar noites enluaradas de festins e zaragatas.
Eis senão quando gente como Pedro Mestre, um miúdo hoje feito homem e nome grande da cultura musical alentejana, que resgatou a velha viola do seu torpor e a fez renascer, ela e os seus cantos, ou como Daniel Luz, artista construtor com oficina ali na estrada de São Teotónio a chegar ao Brejão, última terra de Amália, operaram o milagre dos justos, passo a passo numa canção de paciência que honra quem sabe esperar. Hoje, a campaniça é ensinada nas escolas, a ela se dedicam cancioneiros esquecidos. Aperaltou-se, ressuscitou alegre, maria bonita de fazer inveja às irmãs beiroas ou minhotas.
João Morais confessa que ainda em tempos da barulheira underground dos "Corrosão Caótica" e dos "Gazua" tentou tocar guitarra, a lisboeta guitarra de fado, mas desistiu por pensar que seria apenas mais um sofrível intérprete do melancólico choro da alfacinha cítara. Confessa que sempre ouvira Carlos Paredes, de quem era uma íntimo e secreto admirador. E, conta a lenda de João Morais, O GAJO, que numa algara rockeira a Beja, ouviu o tocador Paulo Colaço a dedilhar uma guitarra esquisita de que nunca tinha ouvido falar e que nunca tinha avistado em seus atribulados dias.
Foi paixão súbita: este gajo não quis saber de mais nada e atirou-se de alma e coração a uma nova vida. Aquele podia ser uma caminho. Afinou-se literalmente ao seu novo amor para lhe revelar acordes belos e imprevistos, toadas antes impossíveis. Este gajo não segue o canon dos novos académicos tocadores da campaniça. Esta mulher afinada em dó é de um homem só. É do Gajo. Ele diz que, sendo o punk uma atitude, é hoje mais punk naquilo que faz com a campaniça do que foi enquanto andou pela electricidade de alta voltagem. Que o punk é assim, um terreno sem tabus nem preconceitos. Como o amor. Seja.
Seja como for, o primeiro disco foi uma revelação. E do que se ouviu daquele que há-de vir se pode assegurar que o gajo continuar a amar esta outra vez feliz alentejana. A música do Gajo é surpreendente: aqui e ali ouve-se Paredes, muito Paredes, e esta afinidade de universos melódicos e harmónicos é um imenso elogio; nas esquinas parece surgir um Tó Trips a sorrir, malandro; a meias, às vezes, umas frases rockeiras dos velhos e violentos amores urbanos. Quem quiser saber mais, tem de ouvir, não chega contar. O gajo esteve nas festas da cidade num ritual secreto junto à velha chaminé iluminada de um vermelho a escorrer paixão. O gajo está apaixonado e isso nota-se.
João Carlos Lopes
O gajo de Benfica apaixonado pela alentejanita
Cultura » 2018-07-11É uma gaiata de cintura fina, curvas generosas, redondinhas, sensuais: foi por ela que João Morais, curtido e calejado rocker da selva urbana de Benfica, se apaixonou, paixão improvável, uma luz que se acendeu numa noite de calmaria na campina alentejana. Subitamente, João empreendeu mudar de vida, sim, mudar de vida: trocar os decibéis brutais e alucinados dos verdes anos, aprender agora a moldar com as mãos a fragilidade e a graça feitas música, música estranha, a pedir os dedos em sincronia num ballet iluminado sobre um braço a dez vozes pontilhadas.
Quando Michel Giacometti percorreu tabernas e barbearias de Ourique e Odemira no início de 70, ele, um corso, doente dos pulmões em terapia de vida chegado a este país de doces manhãs, e registou as baladas indecifráveis do lendário Ti António Bento, ainda jovem, e dos últimos malteses e ganhões que percorriam feiras e despiques, viola a tiracolo, uma viola esquisita a tiracolo, pensou ter encontrado qualquer tesouro vindo de uma terra de ninguém, um tesouro arqueológico de difícil filiação. O corso já tinha andado antes por outros mediterrânios, até por Tras-os-Montes, mas nunca tinha visto nem ouvido nada parecido.
A viola campaniça era, no estertor daquele Alentejo danado o parente mais pobre da família de cordofones tradicionais portugueses: não tinha a beleza rendilhada nem o coração de uma amarantina ou de uma braguesa, nem a elegância burguesa de uma viola da terra açoriana. A campaniça era tosca, roufenha, de voz aramada, sem narrativas melódicas que não as tristes e cansadas melopeias sem princípio e sem fim, sempre mal amanhada, feita com o que havia à mão, o espelho da ascética pobreza de um Alentejo interior do interior, pobre, à parte, ele próprio, naquele triângulo rural dos montes e searas de Ourique, Odemira e Castro, um país à parte.
Perto da passagem do milénio, a campaniça estava praticamente extinta e o Ti António Bento, já velho, apresentado de feira em feira como troféu de um ou outro ansioso académico à procura de salvar o mundo: a graciosa campaniça, moça morena do sol terrível do sul, perdera o canto, salvavam-se ainda as encantadoras curvas de mulher antiga, madura como as amoras dos silvados em Agosto. Mas já não se viam bandoleiros e moinantes que a sabiam amar, num amor bruto, furtivo, de alimentar noites enluaradas de festins e zaragatas.
Eis senão quando gente como Pedro Mestre, um miúdo hoje feito homem e nome grande da cultura musical alentejana, que resgatou a velha viola do seu torpor e a fez renascer, ela e os seus cantos, ou como Daniel Luz, artista construtor com oficina ali na estrada de São Teotónio a chegar ao Brejão, última terra de Amália, operaram o milagre dos justos, passo a passo numa canção de paciência que honra quem sabe esperar. Hoje, a campaniça é ensinada nas escolas, a ela se dedicam cancioneiros esquecidos. Aperaltou-se, ressuscitou alegre, maria bonita de fazer inveja às irmãs beiroas ou minhotas.
João Morais confessa que ainda em tempos da barulheira underground dos "Corrosão Caótica" e dos "Gazua" tentou tocar guitarra, a lisboeta guitarra de fado, mas desistiu por pensar que seria apenas mais um sofrível intérprete do melancólico choro da alfacinha cítara. Confessa que sempre ouvira Carlos Paredes, de quem era uma íntimo e secreto admirador. E, conta a lenda de João Morais, O GAJO, que numa algara rockeira a Beja, ouviu o tocador Paulo Colaço a dedilhar uma guitarra esquisita de que nunca tinha ouvido falar e que nunca tinha avistado em seus atribulados dias.
Foi paixão súbita: este gajo não quis saber de mais nada e atirou-se de alma e coração a uma nova vida. Aquele podia ser uma caminho. Afinou-se literalmente ao seu novo amor para lhe revelar acordes belos e imprevistos, toadas antes impossíveis. Este gajo não segue o canon dos novos académicos tocadores da campaniça. Esta mulher afinada em dó é de um homem só. É do Gajo. Ele diz que, sendo o punk uma atitude, é hoje mais punk naquilo que faz com a campaniça do que foi enquanto andou pela electricidade de alta voltagem. Que o punk é assim, um terreno sem tabus nem preconceitos. Como o amor. Seja.
Seja como for, o primeiro disco foi uma revelação. E do que se ouviu daquele que há-de vir se pode assegurar que o gajo continuar a amar esta outra vez feliz alentejana. A música do Gajo é surpreendente: aqui e ali ouve-se Paredes, muito Paredes, e esta afinidade de universos melódicos e harmónicos é um imenso elogio; nas esquinas parece surgir um Tó Trips a sorrir, malandro; a meias, às vezes, umas frases rockeiras dos velhos e violentos amores urbanos. Quem quiser saber mais, tem de ouvir, não chega contar. O gajo esteve nas festas da cidade num ritual secreto junto à velha chaminé iluminada de um vermelho a escorrer paixão. O gajo está apaixonado e isso nota-se.
João Carlos Lopes
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