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Levado ao engano - maria augusta torcato

Opinião  »  2022-12-26  »  Maria Augusta Torcato

"“Era um fim de tarde. Chega a casa dos meus avós, na Ervideira, uma jovem que, segundo disse era sobrinha do meu avô, e precisava de ir até casa da avó, na Ribeira das Vinhas."

O tempo passa. E passa depressa. E ao contrário do que esculpimos no nosso imaginário em relação ao futuro, a realidade, a determinada altura, exorta-nos mais para a rememoração. Eu já ando há algum tempo neste processo e até acho que não sou nada saudosista.

Porém, a realidade que nos envolve é tão pouco credível, tão frustrante e distante do que deveria ser, que temos de arranjar mecanismos de sobrevivência e defesa, pelo menos no que diz respeito à nossa saúde mental e aos princípios e valores pelos quais, pelo menos alguns de nós, nos regemos.

Este desfasamento entre o que é e o que deveria ser faz-me sentir, a maior parte das vezes, e em múltiplas situações, que fui e sou levada ao engano. Creio, no entanto, que este sentir é plural e que, de forma generalizada, todos se sentem assim, que são levados ao engano, mesmo os que enganam também são enganados. Enganados, iludidos, ludibriados. É um círculo do qual não se sai e, como uma criança que, a pintar, passa com o lápis várias vezes no mesmo sítio com muita força, vai ficando mais largo, mais acentuado e não há qualquer forma de o disfarçar e fazer desaparecer. Em todas as áreas da sociedade é o mesmo. E a deceção e a raiva vão-se instalando em todos nós, o que agudiza os problemas. Já se ouve muitas vezes: “chatear-me para quê?”; “é sempre o mesmo”; “que se lixe isto tudo”; “não há solução”. E muitos outros desabafos, alguns mais vernáculos, e bem empregues, diga-se de passagem.

É nessas alturas que me lembro de uma história, que a minha mãe já me contou várias vezes, que se passou com o meu avó Zé Esteves, e que nos põe a rir de modo desbragado, só esperando que o meu avô, esteja onde estiver (que a sua alma descanse em paz!), não fique danado connosco. Coitado! Também ele foi levado ao engano! Pelo menos, dessa vez que vou contar, ficou uma história para nos rirmos, porque das restantes vezes talvez não houvesse ou não haja motivos para graças.

Estaríamos perto dos anos oitenta, do século passado (parece muito tempo, mas não). E todos nós sabemos o boom comportamental, cultural e social que a revolução nos trouxe. Mas, num cantinho do Alentejo, as novidades e os novos modos parecem demorar mais a chegar e a leitura que se faz dos mesmos parece condicionada por algo que já não existe mas demora a desaparecer.

Era um fim de tarde. Chega a casa dos meus avós, na Ervideira, uma jovem que, segundo disse era sobrinha do meu avô, e precisava de ir até casa da avó, na Ribeira das Vinhas. Não havia carros como hoje, nem autocarros, nem táxis e nem sequer um uber. Comparando com o passado, vejamos as vantagens que temos!

Mas continuando. A jovem tinha cabelos compridos aloirados, era mimosa de pele, vestia calças, mas agora as raparigas já vestiam calças! E o meu avô lá pensou que não era nada correto uma rapariga andar sozinha, e já era tarde. Daí a pouco seria noite. Não podia andar sozinha a moça. Isso é que não. Lá diz à minha avó que a terá de ir pôr a casa da avó dela. Aparelha a carroça com a mula (e era uma sorte o meu avô ter esta autonomia e independência!). Se não tivesse carroça e mula, lá tinha de ir pedir favores a alguém. Mas pronto, aparelhado o veículo, sentam-se ambos, o meu avô, claro está, ocupado com a gestão das rédeas e da mula, que já estava a descansar no palheiro e talvez se tivesse surpreendido com a brusca saída, e as palavras não foram muitas. Nem o nome perguntou à jovem. Mesmo que ela o tivesse pronunciado quando ali chegou, ele não ligou o suficiente para o fixar e agora reproduzir. O meu avô também era homem de poucas falas. Falar para quê? Quando era novo ralhava muito aos seis filhos, mas tinha de ser, que a vida desorientava qualquer pobre.

Fizeram o caminho, em estradas de terra batida e, às vezes, em veredas onde parecia que a carroça não passaria. Mas quem já conduz há tanto tempo e conhece aqueles sítios de trabalho, não desarma e até a mula parecia saber o caminho, mesmo que já fosse escurecendo. Veja-se a vantagem de se ter um animal em quem confiar a condução! Hoje, há tantos, mas sem inspirarem qualquer confiança (isto é um desabafo meu!).

O meu avô lá chegou à casa rasteira, com a horta ali à beira, e havia como que um largozinho em frente à porta, onde deixou a moça e podia voltar a carroça.

Entretanto, lá de dentro da casa, saía já a cunhada, a avó da jovem, que, ouvindo barulhos estranhos a chegar à sua porta, vinha assomar-se para ver o que era. E o meu avô lá entregou a encomenda que trazia com todo o esmero. A avó fez uma grande festa e agradeceu muito ao cunhado Zé o ter feito aquele favor.

Todavia, no caminho de regresso a casa, o meu avô, coitado, devia ter remoído bastante o que se deu conta tardiamente. Talvez o caminho parecesse agora mais curto, ou a mula estava com pressa de se recolher ao palheiro, ou o meu avô acicatava-a com as rédeas mesmo que só de forma instintiva.

O meu avô entrou em casa. Também, a casa era pequena, e logo ali à entrada, à direita, estava a lareira grande com banquinhos de bunho, onde, num deles, a minha avó espiava o lume, enquanto esperava pelo seu homem para fazerem a ceia, que estava quentinha na panela de barro mascarrada, mesmo encostadinha às brasas vermelhas. E é então que o meu avô, um bocado alterado, se sai com esta:

- Ó Augusta, então não queres ver? “Ai, o meu rico neto!”. Afinal, era um rapaz, aquele cabrão d’um corno!

 

 

 

 

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