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A vida secreta das casas abandonadas - maria augusta torcato

Opinião  »  2022-10-23  »  Maria Augusta Torcato

"Há, de facto, uma magia e um mistério nestas casas abandonadas. E nelas continua a haver alma"

Há como que um misto de magia e de mistério nos ambientes que se evolam das casas abandonadas.

Em mim, estas casas estimulam um fascínio difícil de narrar, porque nelas vejo e sinto, melhor, imagino, pessoas e vidas, em fila indiana, cada qual no ponto da linha do tempo que lhe coube.

Perante o estado de abandono e de degradação e ruína, chego a recriar, mentalmente, as fases da sua existência em que eram pujantes, vivificadas, e nelas pululava gente, muita e diversificada gente. Porém, agora, abateu-se sobre elas um silêncio mortal, no qual apenas se criam e recriam o verdete da humidade, o negrume da sujidade, o pó e o salitre, e algumas heras, enleios e outras plantas que se assenhoreiam dos espaços livres e disponíveis e antes ocupados e cuidados.

Alguma coisa se passa comigo e, creio, com muita gente à minha volta. Há como que um desejo escondido e incompreensível de um retorno a parte do passado, aquele que alimenta as nossa memórias afetivas, e isso talvez aconteça, porque, se lá fôssemos, talvez refizéssemos algumas coisas e não teríamos o presente que temos e do qual parece que só desejamos fugir, visto que nos sentimos impotentes e incapazes de o reparar e reconstruir como o tínhamos imaginado lá muito atrás.

Todas as cidades, vilas e aldeias têm um coração, mesmo que este esteja moribundo. Por aqui, onde me encontro, também há um coração, mas bate tão, mas tão devagarinho e de forma tão descompassada, que se não lhe acudirmos depressa e com remédio forte, sem olhar a meios, não o conseguiremos salvar.

As casas abandonadas estão quase todas nos corações destes aglomerados, dos maiores aos mais pequeninos. Se deixarmos que os corações deixem de bater, as terras que os albergam morrem. Com elas, também nós e as nossas memórias.

Não deixo de me surpreender e até questionar sobre o facto de, num país onde o acesso à habitação é tão difícil, onde ter casa própria representa, ainda, um bem e um espaço pessoal de acolhimento e independência, haver tantas casas em absoluto abandono, em ruína completa, mesmo que algumas delas ultrapassem a simplicidade das casinhas pobres e humildes e mantenham, mesmo num estado de derruimento, uma imponência que impele a admiração e o respeito de quem as observa.

Percorro o centro da vila, cruzo ruas e ruelas e acabo na rua principal, a 25 de Abril. Ladeiam-na algumas das casas mais bonitas e poderosas de Alcanena. Quer dizer, foram. Agora, aguardam por um eventual renascer que, acho, dificilmente virá a acontecer. São espaços privilegiados, pela história que fizeram, pelo estatuto que conquistaram e pelas múltiplas possibilidades que ainda oferecem, hoje, pela dimensão, pela localização, pela existência de jardim, quintal ou lugar de lazer, resguardados de olhares exteriores e envoltos em árvores seculares que se erguem ao céu, completamente indiferentes ao abandono que por ali grassa. Há vestígios de tanques e fontes, onde, com certeza, se estancavam nascentes, como diria Cesário, estátuas de deuses e deusas gregas, cujo olhar denota a serenidade de quem não sente o tempo e o esquecimento, em cima de muretes. Há vestígios de poços ou cisternas que alimentavam as cozinhas e permitiam a higiene, como um luxo, não exigindo a deslocação à fonte para se carregar água em cântaros, limitada a quantidade pelo tamanho e número de vasilhas. Os pobres é que iam à fonte. Há vestígios de jardins de inverno e marquises espaçosas, em toda a largura da casa, com envidraçados extensos, quebrados aqui e ali, impedindo o espelhar da unidade em que se integram. Se nos atrevermos a espreitar pelos rendilhados dos portões de ferro forjado, ficamos extasiados com o que vemos. O olhar não despega e ali ficamos a pensar nem sei o quê.

Há, de facto, uma magia e um mistério nestas casas abandonadas. E nelas continua a haver alma. E continua a haver vida. Quanto mais não seja dos seres vivos não humanos que dominarão quais os senhores de antigamente. A par da vida passada, há a vida presente. Mesmo que seja uma não vida. É sempre uma forma de vivência. Lamento que quem foi ou é dono destas casas as tenha deixado chegar a esta degradação. Percebo que quem tinha ou ainda tem estatuto e condições financeiras continua a dominar e a possuir património. Mas será que lhe dá, realmente, valor? Muitas delas estão a transformar-se em amontoados de pedras, quando a história da família, talvez o sacrifício imenso de alguém, lá atrás, está ali. Que nobreza não haveria em transformar e preparar estes espaços de história para múltiplas habitações, contribuindo-se para a qualidade de vida das populações e para o desenvolvimento do seu sentimento de pertença? A destruição e a degradação são preferíveis e mais vantajosas que a preservação e o cuidado? Das coisas e das pessoas?

Quem se atreve a descobrir a vida secreta das casas abandonadas?

 

 

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