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Noite

Opinião  »  2010-10-08  »  Né Ladeiras

Hoje não acendo a luz das árvores. Andei pelo dia como estou agora nesta noite escura profunda. Estabeleço uma ordem, um ponto, algo que me diga por onde seguir. Os meus dedos nas teclas obedecem sem dar tempo ao tempo, dos abraços e das esperas, de outras coisas também, mas que faço por esquecer. Pergunto se quem escreve para contar uma estória fica assim, como a noite escura e funda de hoje. De hoje, porque amanhã não sei se vai ser a mesma ou outra. Esqueço por um segundo que me passou uma imagem de abandono e desalento. Gostava de ver as penas das asas dos anjos cair sobre mim. Gostava de lhes ouvir as vozes claras e suaves. Gostava de sentir o brilho das suas auras. Fico-me pelo que a minha mente decide que eu sinta, embora o meu esforço seja contrário e obrigue o coração a tomar o lugar do cérebro. Não foi sempre assim? Quase sempre. Quase. Leio o que outros mais afortunados descrevem. Quero aprender a sê-lo também. Não é uma questão de mais ou menos sorte, mas de merecimento. Quero desprender-me do que me pesa, do que me mantém no umbral da resistência e da desilusão. Reúno uma pirâmide de todas as coisas acabadas de sair de um quarto escuro (mais do que a noite está) e faço uma fogueira gigante. Examino uma por uma para serem queimadas em conjunto. De algumas tenho pena e fico indecisa sobre a sua sorte, como aqueles objectos que se guardam e vão ficando mesmo sem préstimo algum, porque de tão feios e estragados não podem ficar expostos, e assim continuam no canto mais esquecido do sótão só para descanso de quem os guarda e, de vez em quando, ir olhando para eles e pensar como numa altura longínqua, foram bonitos. Vou encarando o que posso. Vou-me encarando em cada uma dessas peças sem arte. Fazem parte de outras tantas faltas de talento como a quantidade de estrelas que há no céu. A luz da fogueira vibra a cada arremesso, levo-lhe mãos cheias de velharias atravessando a noite escura à sua volta, com medo de deixar cair o que não presta porque não sei se é isso que quero, com medo de tropeçar e cair porque não vejo para além daqui, com medo de estar completamente só entre duas vidas porque não há asas de anjos que me abracem. Lembro-me do cheiro a jasmim que se desprendia do meu jardim no Lumiar, de o respirar em noites como esta, mais escuras e fundas que o degredo, de sentir a cidade como um monstro adormecido, de planear a minha fuga em silêncio, e de me sentir reconfortada porque nele existia. Não havia fogueiras ainda. Não havia estórias para contar, não deste modo. Não havia tentativas goradas, não desta maneira. Existia uma pequena certeza que era tudo o que havia com pouca coisa que a sustentasse, mas era o suficiente. Dentro do meu mundo, que é este e me basta, escolho a inconformidade de ser. Não é preciso muita coisa, sobretudo silêncio e entrega. É o que faço neste momento. Não acendo nenhuma luz artificial no jardim. Tento vê-lo como é sob a noite funda e escura. Tento não ter medo de entregar o que não serve. Preciso libertar um espaço que luta por espaço. Ouvir de dentro e para dentro sem interferências, sem ruído. Saber do medo com a mesma leveza que sentia as noites de jasmim. Ir ao fundo e abraçar uma perda, entender porque aconteceu neste momento, deixá-la ir sem atrasos, para que se torne no que há mais de preciso e definido em toda a minha vida. Ainda assim não ouso dar-lhe um nome, nem ficar demasiado tempo na sua lembrança. Vou queimando o que está a mais e aguardo que as cinzas dos dias, nunca chegados a acontecer, entrem por uma terra que não lhes negue a sua condição de exilados. Noutro tempo podem vir a ser belos dias para alguém, não agora. Há palavras que temo porque acabam com uma interrogação que não tem resposta. Por isso não as digo, por enquanto. Não me sinto livre. Não me sinto inspirada. Olho para Sírius que dorme profundamente. Sorrio enternecida pela inocência das suas certezas. Procuro Órion com o seu cinturão brilhante e o seu trapézio luminoso tatuado no céu. Agradeço a sua presença. Agora vou respirar e sentir o meu jardim que, em toda a sua escuridão, teima contra as minhas dúvidas sobre os anjos que não aparecem. Eu sou a noite escura e funda. Ele é a luz que não acendo porque não me posso ver. Ainda não.
 

Música: L’autre Bout du Monde, Emily Loizeau (L’autre bout du monde - 2006)

 

 

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