Retratos, por Inês Vidal
"Cruzamo-nos nas ruas. A terra é pequena. Dizemos bom dia, boa tarde, está tudo bem? Mas não ficamos para ouvir a resposta"
Matilde é filha de um alfaiate que costurava togas para juízes em Coimbra e de uma modista de alta costura, responsável pelas criações que a mulher de Carmona vestia. Filipe é alentejano e foi atrás de Cristina, que chegou a Torres Novas. Francisco era ilusionista de profissão e passava o dia 25 de Dezembro em palco, de manhã à noite, esquecendo como era ao certo uma ceia de Natal. Alzira trabalhou em Boston, Estados Unidos da América, durante 50 anos. Não fala uma única palavra de inglês.
Mas o que sabemos nós de cada um deles? Que Matilde Bué é presidente da União Desportiva e Recreativa da Zona Alta, que Filipe Mendes tinha, até ao dia em que a casa desabou, uma loja de vinhos na Praça 5 de Outubro, que o senhor Francisco Rodrigues caminha diariamente pelas ruas da cidade, gozando o merecido descanso que a idade traz e que Alzira Branco é uma senhora com 95 anos, acabados de fazer, esperta e despachada, de um jeito único, que nos coloca a nós, aqueles na casa dos 30, envergonhados a um canto.
Se não são de Torres Novas, todos aqui vivem. Conhecemo-los de vista, sabemos o que fazem, por onde andam, mas não os conhecemos. Vislumbramos caras, reconhecemos as feições, mas estamos longe de ver corações.
O corropio da vida faz-nos assim. Entre trabalho e casa, as 24 horas do dia são poucas, para nós e para os nossos, quanto mais para nos dedicarmos a conhecer os outros. Sentamo-nos à mesa do jantar exaustos, ansiosos que chegue a hora de deitar para podermos, finalmente, descansar. E no dia seguinte recomeça tudo outra vez. Não sabemos o que os nossos filhos fazem na escola. Os nossos filhos sabem onde trabalhamos, mas não têm a mínima ideia do que fazemos, ao certo. Não nos conhecemos dentro de nossa casa. Impossível conhecer os que nos rodeiam.
Cruzamo-nos nas ruas. A terra é pequena. Dizemos bom dia, boa tarde, está tudo bem? Mas não ficamos para ouvir a resposta. O tempo corre, a cabeça anda a mil, a pensar no que ainda está por fazer antes de findar o dia. E assim passam horas, dias, uma vida. Até que acabamos assim, sem realmente saber quem somos.
Cada rosto esconde uma história. Tendemos, fruto da hipocrisia que não me tenho cansado de referir, a deixar-nos atrair pelas histórias cujo rosto mais nos diz. Os restantes, partimos imediatamente do errado princípio de que não terão histórias que nos interessem. Mas cada rosto é uma história. Uma história que não é melhor nem pior do que a nossa. É a dele. E é única. Perdemos horas entre revistas cor-de-rosa e redes sociais, numa ânsia de ver o que fazem os nomes sonantes dos nossos dias, como vivem, o que viveram. Mas não paramos um segundo para conhecer a pessoa que cumprimentamos todos os dias quando saímos de casa. De onde vem, porque veio, como aqui chegou.
Adoro retratos. Gosto de rostos, cicatrizes, rugas, marcas de expressão. Gosto de imaginar o que está por trás de cada uma daquelas assinaturas do tempo ou do ser. Tenho a sorte de ter duas profissões que me dão espaço para conhecer as pessoas. Como jornalista, é meu dever parar para as ouvir, como pessoa atrás de um balcão tenho a sorte de que me exijam tempo para ouvir um pouco do que me querem dizer. E a verdade é que me surpreendo sempre que paro para ouvir a história do outro. Do rosto mais improvável, vem a maior prova de que a vida é uma roda gigante, daquelas cheias de luppings. Qualquer uma, mas mesmo qualquer uma, seria digna de ser escrita. Qualquer dia, vou escrevê-las todas.
Retratos, por Inês Vidal
Cruzamo-nos nas ruas. A terra é pequena. Dizemos bom dia, boa tarde, está tudo bem? Mas não ficamos para ouvir a resposta
Matilde é filha de um alfaiate que costurava togas para juízes em Coimbra e de uma modista de alta costura, responsável pelas criações que a mulher de Carmona vestia. Filipe é alentejano e foi atrás de Cristina, que chegou a Torres Novas. Francisco era ilusionista de profissão e passava o dia 25 de Dezembro em palco, de manhã à noite, esquecendo como era ao certo uma ceia de Natal. Alzira trabalhou em Boston, Estados Unidos da América, durante 50 anos. Não fala uma única palavra de inglês.
Mas o que sabemos nós de cada um deles? Que Matilde Bué é presidente da União Desportiva e Recreativa da Zona Alta, que Filipe Mendes tinha, até ao dia em que a casa desabou, uma loja de vinhos na Praça 5 de Outubro, que o senhor Francisco Rodrigues caminha diariamente pelas ruas da cidade, gozando o merecido descanso que a idade traz e que Alzira Branco é uma senhora com 95 anos, acabados de fazer, esperta e despachada, de um jeito único, que nos coloca a nós, aqueles na casa dos 30, envergonhados a um canto.
Se não são de Torres Novas, todos aqui vivem. Conhecemo-los de vista, sabemos o que fazem, por onde andam, mas não os conhecemos. Vislumbramos caras, reconhecemos as feições, mas estamos longe de ver corações.
O corropio da vida faz-nos assim. Entre trabalho e casa, as 24 horas do dia são poucas, para nós e para os nossos, quanto mais para nos dedicarmos a conhecer os outros. Sentamo-nos à mesa do jantar exaustos, ansiosos que chegue a hora de deitar para podermos, finalmente, descansar. E no dia seguinte recomeça tudo outra vez. Não sabemos o que os nossos filhos fazem na escola. Os nossos filhos sabem onde trabalhamos, mas não têm a mínima ideia do que fazemos, ao certo. Não nos conhecemos dentro de nossa casa. Impossível conhecer os que nos rodeiam.
Cruzamo-nos nas ruas. A terra é pequena. Dizemos bom dia, boa tarde, está tudo bem? Mas não ficamos para ouvir a resposta. O tempo corre, a cabeça anda a mil, a pensar no que ainda está por fazer antes de findar o dia. E assim passam horas, dias, uma vida. Até que acabamos assim, sem realmente saber quem somos.
Cada rosto esconde uma história. Tendemos, fruto da hipocrisia que não me tenho cansado de referir, a deixar-nos atrair pelas histórias cujo rosto mais nos diz. Os restantes, partimos imediatamente do errado princípio de que não terão histórias que nos interessem. Mas cada rosto é uma história. Uma história que não é melhor nem pior do que a nossa. É a dele. E é única. Perdemos horas entre revistas cor-de-rosa e redes sociais, numa ânsia de ver o que fazem os nomes sonantes dos nossos dias, como vivem, o que viveram. Mas não paramos um segundo para conhecer a pessoa que cumprimentamos todos os dias quando saímos de casa. De onde vem, porque veio, como aqui chegou.
Adoro retratos. Gosto de rostos, cicatrizes, rugas, marcas de expressão. Gosto de imaginar o que está por trás de cada uma daquelas assinaturas do tempo ou do ser. Tenho a sorte de ter duas profissões que me dão espaço para conhecer as pessoas. Como jornalista, é meu dever parar para as ouvir, como pessoa atrás de um balcão tenho a sorte de que me exijam tempo para ouvir um pouco do que me querem dizer. E a verdade é que me surpreendo sempre que paro para ouvir a história do outro. Do rosto mais improvável, vem a maior prova de que a vida é uma roda gigante, daquelas cheias de luppings. Qualquer uma, mas mesmo qualquer uma, seria digna de ser escrita. Qualquer dia, vou escrevê-las todas.
![]() Em meados da década de 60 do século passado, ainda o centro da então vila de Torres Novas pulsava ao ritmo das fábricas. Percorrendo-a, víamos também trabalhadores de pequenas oficinas e vários mesteres. |
![]() Votar é decidir, não votar é deixar a decisão que nos cabe nas mãos de outros. Uma verdade, tantas vezes repetida. No entanto, a abstenção tem mantido uma tendência ascendente nos vários actos eleitorais. |
![]() O funambulismo é uma arte circense que consiste em equilibrar-se, caminhando, saltando ou fazendo acrobacias sobre uma corda bamba ou um cabo metálico, esticados entre dois pontos de apoio. Ao funambulista cabe a difícil tarefa de chegar ao segundo ponto de apoio sem partir o pescoço. |
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É plausível afirmar que o corpo político, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga da pandemia, não tem estado feliz na actual situação. Refiro-me ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos dirigentes das várias oposições. |
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- Ó querida, sou tão bom. Mas tão bom que até vais trepar pelas paredes. - Ai sim? E como é que vais conseguir tal proeza? - Ora… Isso agora é cá comigo. Eu é que sei. |
![]() Sinto que estou sempre a dizer o mesmo, que os meus textos são repetições cíclicas dos mesmos assuntos e que estes são, só por si, repetições cíclicas e enfadonhas deles próprios. |
![]() Foi paradigmático o facto de, aquando da confirmação (pela enésima vez) da intenção do Governo em avançar com o TGV Lisboa/Porto, as únicas críticas, reparos ou protestos de autarcas da região terem tido por base a habitual choraminga do “também queremos o comboio ao pé da porta”. |
![]() Há uns meses, em circunstâncias que não vêm ao caso, tive o prazer de privar com José Luís Peixoto e a sua mulher, Patrícia Pinto. Foram dias muito agradáveis em que fiquei a conhecer um pouco da pessoa que está por trás do escritor. |
![]() Podemos dizer que um jogo de futebol sem público ou vida sem música é como um jardim sem flores. Não que um jardim sem flores deixe de ser um jardim. Acontece que, como no jogo de futebol, fica melhor se as tiver. Já se for uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, a comparação com o jardim sem flores não funciona, pela singela razão de que uma sopa de feijão com couves que não tenha couves, sendo ainda sopa, sopa de feijão com couves não é de certeza. |
![]() Entrados na terceira década do século XXI, o Mundo dos humanos permanece o lugar povoado das injustiças, da desigualdade e do domínio de uns sobre os outros. Não é a mudança dos calendários que nos muda a vida. |
» 2021-01-12
» João Carlos Lopes
O TGV, o Ribatejo e o futuro das regiões - joão carlos lopes |
» 2021-01-10
» Inês Vidal
2021: uma vida que afaste a morte - inês vidal |
» 2021-01-23
» Inês Vidal
Eu voto, mas não gosto do rumo que isto leva - inês vidal |
» 2021-01-10
» Jorge Carreira Maia
Uma visita à direita nacional - jorge carreira maia |
» 2021-01-10
» José Ricardo Costa
A Pilhagem - josé ricardo costa |