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O Mar, O Mar - josé ricardo costa

Opinião  »  2023-06-03 

Fartei-me de andar à boleia quando era novo. Havia a teoria de que duas pessoas seriam o ideal para nos fazermos à estrada, que só uma era aborrecido e três já seria gente a mais para fazer parar um carro. Em A Arte da Viagem-Uma Poética da Geografia, o filósofo francês Michel Onfray diz o mesmo para o acto de viajar em geral, com o qual concordo em parte, pois há situações em que viajar sozinho tem as suas vantagens (o sentido de observação é dez vezes maior), embora outras em que a ausência tem o peso de uma desoladora presença.

Estava há cinco dias em Atenas. Os dois primeiros com direito a visita guiada por um casal grego que me levou algumas estações de metro para lá dos limites turísticos e a circular por mais recônditos terrenos à volta da Acrópole com vistas de 360º de cortar a respiração. Depois, três dias sozinho, embora sem abdicar da companhia do mapa por facilmente deixarmos de saber em que parte da cidade estamos devido à sua irregular fisionomia. Sempre a pé, entre o nascer do sol e o seu ocaso, deu para ficar com um bom conhecimento da cidade, tanto do seu moderno tecido urbano, como da parte histórica (igrejas, Acrópole, Ágora, a prisão, segundo a tradição, de Sócrates, o estádio das primeiras Olimpíadas da era moderna) e museológica (Museu Arqueológico, o moderno Museu da Acrópole, e a boa surpresa que foi o Museu de Arte Cicládica, onde vislumbrei algumas coisas da arte moderna).

Atenas é uma cidade gigantesca que, vista da Acrópole, ou desse lugar a roçar o céu que é o monte Licabeto, que faz a cidade parecer um rés-do-chão visto do 10º andar, parece toda plana e monocórdica. Não é. Grande parte, sim, mas também com muitas ruas íngremes e povoadas de escadarias, densamente arborizadas e com as varandas repletas de uma vegetação que dá a uma cidade que, no Verão, se transforma na oficina do deus Hefesto, uma umbrosa beleza. Falo, claro, de bairros cujos residentes ganham bem mais do que o ordenado mínimo.

Fora dessas idílicas bolhas, é uma cidade barulhenta, suja, densamente borrada por grafites e cartazes afixados nas paredes, inteiros ou esfarelados como nos anos 70 em Portugal, e onde, ainda como em Portugal, o ruidoso e poluente automóvel é rei. Impossível pressentir o encanto da cidade nos velhos tempos do Grand Tour, ou mesmo já no século XX quando por lá andaram Sophia de Melo Breyner Andresen e Agustina em busca do esplendor da Grécia Antiga, com tanto turista histérico e armado com os seus cabos extensíveis para as selfies compradas aos paquistaneses, trotinetas que surgem de todos os lados como ameaçadoras Erínias, rebanhos pastoreados por cicerones através de um microfone, sem fazerem ideia de quem foram Péricles, Tucídides, Sófocles ou Xenofonte, embora devam ter privado com Circe na sua ilha.

Tinha ainda dois dias até regressar a Torres Novas, mas já um bocadinho cansado da cidade. Tive então uma brilhante ideia: uma ilha! Se há coisa que não falta naquela parte do Mediterrâneo são ilhas, e para todos os gostos e feitios. Escolhi Egina. Como sempre, levanto-me com o galo para rumar ao Pireu para apanhar o ferry, passando mesmo ao lado do estádio do Olympiakos. Não sei explicar porquê, sinto um entusiasmo infantil sempre que passo junto a um estádio, que deve ser algo parecido com o que sentem os peregrinos quando chegam ao santuário de Fátima.

E eis então o mar, um tranquilo lago que vou atravessando num ritmo medieval, e que me vai trazendo, à esquerda ou à direita, mais uma ilha, um ilhéu, uma ilhota, percebendo melhor porque é que Ulisses, no regresso a Ítaca, estava sempre a pôr os pés em terra. Depois Egina, onde, logo à chegada, sou recebido por uma pequena capela, ortodoxa, claro, certamente para me abençoar no que viria a ser um dos meus mais luminosos dias. A ilha é grande, mas fiquei com uma boa ideia dela, para o que contribuiu também uma deslocação de camioneta, misturado com habitantes locais, assim como quem vai de Torres Novas para Alcorochel, até ao templo de Atena Afaia que, lá do alto, revela uma soberba vista sobre o mar.

Mas foi na baía, já fora do núcleo urbano, árvores de um lado e mar do outro, que senti o peso da ausência. Suavemente imerso num tempo suspenso, caminhando de mão dada com o mar mais bonito que vira até então, um perfeito dia de Primavera, a luz perfeita, a temperatura perfeita, o silêncio perfeito, só interrompido pelos pássaros, o rumor das árvores ou de tímidas ondas a dissolverem-se na areia. Não resisto então a telefonar à minha filha, que trabalhava na altura em Santiago do Chile, sem pensar na diferença horária. Ela, que sempre teve um acordar difícil, lá atende passado um bom bocado como se recebesse, do além, um telefonema de um deus vingador.

Com o remorso de um ser humano, mas com o júbilo de um deus passeando pela brisa da tarde, pedi-lhe desculpa, e que era só para dizer que não consegui ficar calado diante da perfeição, e que precisava de ouvir a minha voz para provar que estava mesmo vivo e não acabado de chegar ao Paraíso depois de me dar um enfarte em Torres Novas. Claro que voltou a adormecer sem perceber nada, mas eu desliguei o telefone mais acordado do que nunca.

 


 

 

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