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César, o ciclista de capacete - josé alves pereira

Opinião  »  2021-08-14  »  José Alves Pereira

"“O César era notado por ser, provavelmente, o único ciclista em Torres Novas que usava um capacete, daqueles tipo tacho, cuidadosamente atado nos queixos”"

Aos olhares de agora, o título deste texto parece um tanto redundante dado que o capacete é hoje integrante natural do equipamento de um ciclista. No tempo que aqui reporto, por meados dos anos 60, assim não era, mesmo no caso das provas ciclísticas, o que por vezes acarretava trágicas consequências.(1) Este César a que aqui faço chamada apenas será lembrado já por alguns que o conheceram, mas cuja estória de sobrevivência julgo interessante.

Conheci-o nos finais de 1964, era eu estagiário do curso industrial na sala de desenho da antiga Casa Nery. Depois, durante oito anos, com interrupções devido ao meu serviço militar, mais espaçadamente. Por essa altura, cumpria ele a função de arquivista de desenhos e operador de revelação dos ozalides. Recordando o que os mais novos não conheceram, num primeiro passo os desenhos técnicos faziam-se em papel e depois copiados, a tinta da china, para vegetal através de tira-linhas e mais tarde com as canetas Rotring. Este papel transparente era sobreposto a uma folha previamente impregnada de um composto químico e submetidas à luz de uma lâmpada ultravioleta ou ao sol durante alguns segundos. A folha era rapidamente inserida numa câmara com atmosfera saturada de amoníaco e o grafismo monocolor (sépia ou azul) do ozalide revelado. Assim se reproduziam os desenhos que circulavam nas oficinas. 

Voltando ao César. Meão de estatura, rosto redondo e moreno, olhos vivos escondidos por uns óculos de “aros de tartaruga”, cabelo negro. Penso que andaria pela casa dos 30 anos. Por essa altura, vinha de bicicleta da Meia Via, com o cesto em verga na retaguarda, onde trazia o almoço. Era notado por ser, provavelmente, o único ciclista em Torres Novas que usava um capacete, daqueles tipo tacho, cuidadosamente atado nos queixos, apesar ir dando aos pedais muito calmamente.        

A sua odisseia é, todavia, anterior a este tempo e é a esse que recuo um pouco mais. Escassos anos tinham passado desde que fora trabalhador oficinal na secção de máquinas da Casa Nery, num trabalho duro e pouco qualificado. Morava na Meia Via, de onde se deslocava, como já vimos, todos os dias de bicicleta para o trabalho, aqui entrando pelas 8 horas.

Um dia o azar, e também a falta do capacete, bateu-lhe à porta ou o diabo estava à espreita. Assim alvitrava a voz popular quando referia o acontecido. Pois a madrugada estava chuvosa e um denso nevoeiro fechava a curta distância a cortina do olhar. “Não se via um palmo à frente do nariz”, dizia quem (não) viu. Diz-se que apertado por um automóvel terá saído por uma valeta; rebola não se sabe por onde, bate aqui e ali, ficando estirado no chão entre o inanimado e o “morto”. Uma negra nuvem pairou sobre a vida do César. Só no hospital de Torres Novas, para aonde é transportado de imediato, o irão saber.

Este imediato, ao tempo, demoraria longos minutos porque as comunicações e os meios eram bem outros. Os exames médicos revelam que está vivo embora em coma profundo. Assim permanecerá durante muitos dias sem dar acordo de si. Os camaradas de trabalho, antevendo o pior, quotizam-se para comprar uma coroa de flores que acompanhará o féretro na despedida final.

Um belo dia, este belo é aqui por demais apropriado, a mãe do César é chamada ao hospital para lhe comunicarem que ele balbuciara qualquer coisa. Naquela altura o hospital pertencia à Misericórdia local e funcionava ainda com o serviço prestado por irmãs religiosas. Diz-se que, perguntadas sobre o estado do doente, elas terão referido que estaria um pouco melhor, mas um pouco “mal educado”. O “ressuscitado”, ao acordar, teria desabafado: “esta m**** dói !”. Certamente que, perante o milagre, as irmãs terão perdoado aquela descaída verbal.

Meses passados retomou o trabalho, mas impossibilitado de cumprir as anteriores tarefas oficinais, foi transferido para os apoios à sala de desenho, onde mais tarde o conheci e por onde comecei esta descrição. Dada a fragilidade com que ficara, passou a usar um capacete comprado com o dinheiro que os seus camaradas tinham angariado para a coroa de flores.

O César foi um dos alunos que primeiro frequentaram o curso nocturno da recém-criada Escola Industrial de Torres Novas. Mais tarde, emigrou para França e não mais os nossos passos se cruzaram, mas recordo o convívio que com ele mantive e o seu drama que me foi contado, certamente com imprecisões. Os afastamentos provocados pelos tempos que vivemos não permitiram ir mais longe, mas o essencial ficou. O César era um sujeito simpático, modesto e generoso. Foi assim que o conheci e que o relembro.

(1)   Em Maio de 1984, o campeoníssimo ciclista Joaquim Agostinho, no final de uma etapa da X Volta ao Algarve, devido ao atravessamento de um cão, dá uma queda, sofre um traumatismo craniano, entra em coma e morre dez dias depois.

 

 

 

 

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