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A importância de uma revolução

Opinião  »  2015-04-24  »  Maria Augusta Torcato

Nunca mais esqueço aquela madrugada de primeiro dia de ano novo. Pendurada numa das bolas de metal amarelo da cama de ferro igualmente amarela, estava uma pasta preta, de pele, com uns salpicos gravados em relevo. Lá dentro, estava uma pedra, ou seja, uma ardósia, dois pauzinhos de giz, um livro de leitura, do primeiro ano, e uma tabuada.

Eu tinha acabado de fazer cinco anos. O meu pai, vaidoso da filha, queria dar-me algo que sabia muito importante. Ainda mais quando todos os dias eu pedia para ir para a escola. Nada me custava mais do que ver as minhas amigas, cerca de dois anos mais velhas do que eu, irem para a escola e eu ter de ficar por ali, sozinha, em frente à barbearia onde o meu pai trabalhava.

Compreendo, hoje, o que significaria para o meu pai o facto da sua filha, naquela altura, revelar uma apetência invulgar pela escola e pelo aprender. Ele sabia que o caminho era por ali. E também sabia que o caminho estava reservado a muito poucos. Mas é legítimo um homem sonhar.

Nunca mais esqueço outra madrugada. Esta já distante da primeira quer no tempo, quer no espaço. O Alentejo fora ocupado pelo Ribatejo, em mim. O caminho da escola mantinha-se. Era um privilégio fazer esse caminho, quando tantas colegas tinham ido aprender costura ou trabalhar para a fábrica de malhas, depois do exame da quarta classe. Era assim. Mas esta madrugada era diferente, não percebia muito bem porquê. Não se falava muito. Não havia grandes explicações. Mas percebia-se que as coisas estavam diferentes. Havia como que um misto de névoa e êxtase e de prazer inseguro. Fui, gradualmente, tendo consciência do que havia mudado. Para uma adolescente, não é difícil perceber as mudanças. Os operários estavam muito mais expansivos e interventivos. As movimentações nas ruas eram permanentes. As manifestações, desconhecidas até então, passaram a ser focos e encontro de ideias, o extravasar de sentimentos e emoções, ninhos de sonhos e futuros, libertação do corpo e da alma. Vozes em coletivo, gritos de liberdade e pela igualdade na busca do caminho… a partir da madrugada do 25 de Abril de 1974.

Muitas coisas mudaram. Até a escola mudou. Descobri, com uma professora de Português, uma jovem do Porto, um aprender diferente. De viola às costas, fazia-nos sair da sala de aula, percorríamos os campos que envolviam a escola. Conversávamos, líamos. Descobri os escritores neorrealistas. Aprendi a discutir, a defender ideias e uma forma diferente de estar. Havia um prazer indescritível em todo este mundo novo ainda eivado de balizas e receios. E até quando tive de deixar a escola, completado o terceiro ano do curso geral dos liceus, aos quinze anos, para ir trabalhar, uma voz interior dizia-me que não terminaria por ali. O que havia sido plantado não se arrancaria com facilidade. Aliás, reforçou-se com a experiência vivida em cerca de cinco anos de trabalho na COCOAL. Só quem trabalhou em e para esta organização, nos anos imediatos ao 25 de Abril, perceberá o que quero dizer. Entrega, empenho, esforço e trabalho coletivos substantivavam os dias. Mas naquela altura isso existia. Os ideais da revolução respiravam-se, acreditava-se que era possível a construção de um mundo diferente, de uma sociedade melhor e que o nosso país encontraria o seu caminho na senda da igualdade e da fraternidade. Acreditava-se. E eu era jovem. Muito jovem. E quando se é jovem os sonhos também são jovens e tudo é possível.

A escola continuou no meu caminho e eu nunca desisti dela. A revolução deu-me isso. Deu-me a possibilidade de conquistar, não obstante o esforço. O que era restrito passou a ilimitado e eu aproveitei. A revolução trouxe-me, sem qualquer dúvida, uma consciência de mim, ser individual e coletivo, pessoa. O que sou. E o que sou é tudo o que fui e o que serei.

Agora, as madrugadas deram lugar às tardes e a estas sucederam as noites. Sinto que atraiçoaram a revolução e tudo o que ela representava.

Que míngua de madrugadas! Sinto que falta cumprir-se a revolução. Sinto a emergência de uma nova madrugada… sinto.

 

 

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