Não sendo médica nem psicóloga nem técnica de coisa nenhuma, e declarando-me aqui humilde aprendiz sem mestre do curso de bem-viver, muito esforçada na observação e no estudo, munida dos meus filtros e dos meus óculos de aumentar, tenho observado que as pessoas continuam infelizes apesar do bem-estar e conforto materiais, apesar do conhecimento e da cultura estarem ao alcance de todos, e apesar dos avanços da ciência e de todas as facilidades que as actuais gerações têm em relação às que nos precederam.

Com as minhas conclusões elaborei uma tese e uma teoria, tão empíricas e banais como todas as que aqui partilho mas que, se melhorarem a vida de uma só pessoa que seja, já justificam o meu trabalho.

Observei que a primavera e o verão são as melhores alturas, sabiamente escolhidos pelas donas de casa para fazerem as limpezas maiores, virar a casa do avesso e reorganizá-la com tudo lavado e limpo. Também nas empresas e colectividades se costuma aproveitar o período menos intenso para proceder a arrumações e restruturações.

Proponho uma rentrée higiénica. Acho que as pessoas adultas também deviam fazer uma limpeza geral a si próprias uma vez por ano. Uma lavagem ao coração, um arranjo no carácter, uma arrumação nos sentimentos, uma aspiração à parte interna do miocárdio, uma desinfestação do cérebro e até uma varridela nos cantos mais sombrios da alma. Tratarmos a nossa casa interior e todas as suas divisões, mesmo as fechadas, como fazemos aos dentes, à pele e aos dedos dos pés: de vez em quando, um tratamento de manutenção ou um conserto urgente para nos mantermos funcionais, mas uma vez por ano um lifting completo e um checkup preventivo. O mesmo tratamento que damos ao corpo por fora e por dentro, devia ser ministrado na essência de cada um de nós, sob pena de nos tornarmos a cada dia pessoas mais feias e enfermas e, por conseguinte, mais infelizes.

Ir de viagem, regressar ao básico, meditar, soltar o nosso lado infantil e voltar a brincar, relativizar os nossos problemas conhecendo o outro lado da realidade que nos circunda, são algumas das propostas de limpeza geral que vos deixo. E estes remédios não são descabidos, vieram-me à ideia depois de muitas observações das quais destaco uma reportagem a que assisti.

Um certo cirurgião plástico muito conhecido, no seu consultório branco e asséptico de Beverly Hills, realizava por ano centenas de cirurgias estéticas a meninas e senhoras bem-parecidas que queriam melhorar o seu aspecto. Um dia, decidiu doar os seus conhecimentos em favor dos menos favorecidos e partiu para o México numa missão de voluntariado, para operar gratuitamente alguns doentes sem dinheiro para tratamentos. Em vez de lipoesculturas e aumentos mamários, nasoplastias e peelings, o seu trabalho no primeiro dia foi observar oitenta doentes, para seleccionar cerca de trinta - os imediatamente operáveis pela urgência, naquelas condições e com os meios ao seu dispor. Começou por aqueles pacientes cujas deformações físicas se traduziam em desastrosas mazelas psíquicas, como lábios leporinos, cicatrizes extensas e mal-formações de toda a ordem. Mas o acto de escolher quem tratar, e negar aos outros a hipótese de tratamento, foi de uma violência brutal. O médico sucumbiu ao peso da sua impotência, e chorava na sala de espera daquele hospital junto dos doentes que também choravam por quererem ser atendidos. Ele não conseguia ajudar todos. E disse ist ”Eu tinha-me esquecido que era assim que as pessoas viviam!”

Esta reportagem teve em mim o efeito de uma máquina de lavar, sacudiu-me, revolteou-me, escavacou-me e depois fiquei lavada. Eu andava distraída como ele.

Todos nós esquecemos tantas vezes, acomodados nas nossas rotinas e confortos, que a nossa realidade não é a realidade de todos. E não podendo operar todos os doentes, podemos operar apenas um, e mudar essa vida para melhor. Bastava arriscar o primeiro passo e pormo-nos no lugar do outro de vez em quando, e ficaríamos mais limpos por dentro. Mais ricos, mais cheios de leveza. Mais cintilantes.