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Um conto de Natal

Opinião  »  2013-12-27  »  Graça Rodrigues

Sento-me aqui neste sofá velho de tantos anos, recostada, os olhos apagados, uma manta no colo e as mãos sempre frias, a espantar a vontade de escrever as memórias antes de elas se gastarem. Não acredito nas minhas memórias, mas por vezes é preciso deixá-las arejar, passeá-las pelas divisões vazias, sair do quarto, olhá-las pelo lado de dentro do vidro, acreditar que podem ter sido vividas. As memórias são decepções do presente. Já vivi demais, perdi a conta aos dias e mesmo aos anos que passaram, até ficar cansada deles, todos os anos a passarem por mim e eu ligada a esse fiozinho apenas por um filamento, a vida tão frágil que a qualquer momento se podia esfiapar. Tantas vezes a senti romper. Tantas vezes achei que não valia a pena tecer o que quer que fosse com tão fraco e pobre fiozinho, mas outras tantas vezes a experimentar novas tessituras, fortalecendo os fios podres com outros novos, emaranhando fios nobres nos velhos trapos, dignificando os farrapos que me restavam.

Vivi, sim, presa numa trama esgaçada, numa tapeçaria. A qualquer momento que quisesse, desmanchava-a e tecia outra. Podia ter-me desfeito a qualquer momento. Mas não. Aguardei sempre a chegada de novas cores. De padrões novos. O que até hoje não me deixou desistir de tecer os dias, mesmo agora com tantos anos em cima que até parece que já dei uma volta completa à vida e vou a nascer outra vez, é esta certeza intacta de que eu não podia ter sido outra pessoa que não esta que fui. Se eu ou tu tivéssemos sido outros, dois bocados imperfeitos de pessoas que eram uma amálgama da mesma pessoa perfeita, as minhas memórias não seriam estas.

Partiste antes de mim, e não devia ter sido assim. Gostava que fosse eu a despedir-me primeiro, que fosses ao meu enterro e me chorasses. Eu não fui ao teu, nem chorei por ti, mas isso foi porque acreditei que se me estivesses a ver ias achar que eu estava com pena de mim mesma por já não te poder abraçar. Ou que eu sou muito feia quando choro. Claro que sou muito feia a chorar, mas já não me importo. E não tenho pena nenhuma de já não te poder abraçar, abracei-te todos os dias enquanto vivi, não é isso que é importante? Enquanto viveste eu tive sempre as mãos quentes, e o nosso sofá não cheirava a mofo nem o quarto tinha as paredes a abrir fendas, ou a nossa cama era grande demais. Foi tudo perfeito enquanto te tive. Foi perfeito aquele primeiro passeio que demos, devagarinho pelas ruelas de uma cidade desconhecida, quando já mal podíamos andar mas tão novos por dentro como se as cidades fossem de brinquedo e os nossos pés tivessem sido treinados para nos fazerem voltar atrás no tempo.

Foi perfeito conhecermos os nossos netos, os olhos deles iguais aos nossos, e os mesmos sonhos. Foi perfeito o nosso primeiro Natal nesta casa, não foi? A nova família que criámos, tão igual às famílias antigas, a mesma mesa de Natal repleta desde tempos imemoriais! O presépio de barro na cómoda da entrada, e tu a cortares pedacinhos de abóbora na cozinha. O teu joelho a queixar-se e tu vergado sobre as pedras e o musgo da serra, uma névoa à roda dos lábios no dia mais frio do ano. Eu a chamar-te para a missa do galo e tu agastado, a igreja tão fria, Jesus a fingir que nasceu nas palhinhas e nós a sabermos que morava naquela caixa de madeira onde guardavas as minhas cartas. As luzes a piscar e os teus olhos a luzir para mim. Tu a acenderes-me o Natal em Março, ou em Junho. Tu de olhos fechados, a sorrires-me naquele concerto, lembras-te? Foi perfeito o nosso último beijo, mais tímido ainda que o primeiro, a minha mão nos teus cabelos, o teu peito a empurrar o meu, perfumes misturados, o mesmo coração a bater em duplicado no meio da sala. O nosso amor no presente a ser verbo dum tempo mais que perfeito.

Hoje eu ia morrer, sabes? Decidi morrer, porque amanhã é Natal. Sabes que é Natal, não sabes? E qualquer Natal sem estrelas nos teus olhos a luzir, me parece impróprio, obsceno, impossível. Não ia viver mais nenhum Natal sem ti.

Mas bateram-me à porta e pensei abrir, podias ser tu, lá no alto onde agora moras podias ter descoberto os comprimidos no frasquinho debaixo da nossa almofada, podias vir ralhar comigo, ou podias apenas querer vir passar o Natal na nossa casa.

Fui abrir. Eram crianças a cantar as boas-festas. Sorriam e cantavam, nevoazinhas a sair dos lábios, o meu coração a bater muito, algumas memórias leves a vogar na sala, a árvore a piscar de repente e o menino do presépio com uma carta na mão.
Uma das crianças na ponta dos pés, uma luzinha nos olhos, os dedos sujos de musgo, ou abóbora, e de repente as minhas mãos a ficarem quentes outra vez e o Natal aceso pela casa toda.

 

 

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