Carteiro
Opinião » 2019-08-09 » Ana Sentieiro"Não tenho semelhanças físicas, mas sim gasosas com os meus familiares"
A genética é, de facto, uma coisa incrível! Contudo, no meu caso, a genética desempenha mais o papel de progenitor ausente, que se esquece do meu aniversário, não sabe o meu número de telemóvel e saca duas notas de vinte da carteira de pele quando está folgado e diz, “Para te divertires, mas não digas à tua mãe!”. As opiniões contradizem as semelhanças físicas que me unem aos meus pais. “Ai, tem os olhos do pai!” “Engraçado... No sorriso sai à mãe!” “Eu por acaso até acho que dá um ar da avó...” Calma, calma! O que é “um ar”?
É com esta expressão que reclamo as minhas independentes feições! Não tenho semelhanças físicas, mas sim gasosas com os meus familiares. Bebemos água da mesma garrafa e partilhamos o sofá, mas, visto de fora, a única parecença é o facto de respirarmos. Já coloquei a hipótese de ser adotada. Isso explicaria a minha inexplicável descoordenação para a cozinha, total desinteresse por documentários da RTP2 e vergonhosa incapacidade de dobrar a falangeta dos dedos da mão.
Penso que o aspeto mais intrigante nesta situação, para além de sentir que não pertenço a uma linhagem biologicamente una, de não passar de um feijão numa panela de favas, é o facto de possuir características bizarras, não visíveis a olho nu, explicadas pela genética. Ponto da situação: não existe uma correlação física, uma associação direta entre mim e os meus pais. No entanto, os genes que sobreviveram ao processo de seleção foram os desequilibrados, os manetas, os vesgos, os espanhóis. Não herdei os pés de princesa da minha mãe. Em vez disso, herdei os pés de um homem neozelandês, com um metro e noventa e sete de altura, que pertence a uma tribo nativa e abre amendoins com o mindinho. Não herdei os olhos verdes do meu avô.
Apostaram no segundo filho. “Epá não, não jogues a manilha já, que é cedo! Joga antes o seis de paus, que é palha, mas da altita, só para não dar uma de miserável...”. Não herdei o cabelo Whitney Houston da minha mãe. I have nothing, mas uma salganhada de pontas espigadas que se encontram em pé de guerra, num conflito político armado: “hoje sou liso mas o aglomerado de pelos atrás da orelha reivindicaram o direito de serem encaracolados.
Os protestantes albinos deslocam-se a ritmo acelerado e descaem a fronteira para a testa. O presidente já ameaçou lançar o spray hidratante de abacate nas pontas e garante que recorrerá à escova para cessar o conflito. Devolvo a emissão ao estúdio. João Paulo.” Não herdei o gémeo esculpido por Miguel Ângelo na perna do meu pai, o rebuscado humor ou a desconcertante paixão pela adrenalina dos desportos radicais. Fiquei com a unha do dedo grande com tendência para encravar, alergia aos pólenes e senilidade precoce (“Calma, onde é que deixei o cartão multibanco? A carteira? Epá, devo tê-la deixado no carro... Espera lá, alguém viu a chave do carro?”).
Eu sou aquele membro que em jantares de família tem de andar sempre acompanhada com alguém que prove a minha filiação, senão os tios em terceiro grau vão achar que me infiltrei só para petiscar os croquetes e comer o semifrio de frutos vermelhos. “Então e tu, és filha de quem?” “Do carteiro, só pode...”
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Opinião » 2019-08-09 » Ana SentieiroNão tenho semelhanças físicas, mas sim gasosas com os meus familiares
A genética é, de facto, uma coisa incrível! Contudo, no meu caso, a genética desempenha mais o papel de progenitor ausente, que se esquece do meu aniversário, não sabe o meu número de telemóvel e saca duas notas de vinte da carteira de pele quando está folgado e diz, “Para te divertires, mas não digas à tua mãe!”. As opiniões contradizem as semelhanças físicas que me unem aos meus pais. “Ai, tem os olhos do pai!” “Engraçado... No sorriso sai à mãe!” “Eu por acaso até acho que dá um ar da avó...” Calma, calma! O que é “um ar”?
É com esta expressão que reclamo as minhas independentes feições! Não tenho semelhanças físicas, mas sim gasosas com os meus familiares. Bebemos água da mesma garrafa e partilhamos o sofá, mas, visto de fora, a única parecença é o facto de respirarmos. Já coloquei a hipótese de ser adotada. Isso explicaria a minha inexplicável descoordenação para a cozinha, total desinteresse por documentários da RTP2 e vergonhosa incapacidade de dobrar a falangeta dos dedos da mão.
Penso que o aspeto mais intrigante nesta situação, para além de sentir que não pertenço a uma linhagem biologicamente una, de não passar de um feijão numa panela de favas, é o facto de possuir características bizarras, não visíveis a olho nu, explicadas pela genética. Ponto da situação: não existe uma correlação física, uma associação direta entre mim e os meus pais. No entanto, os genes que sobreviveram ao processo de seleção foram os desequilibrados, os manetas, os vesgos, os espanhóis. Não herdei os pés de princesa da minha mãe. Em vez disso, herdei os pés de um homem neozelandês, com um metro e noventa e sete de altura, que pertence a uma tribo nativa e abre amendoins com o mindinho. Não herdei os olhos verdes do meu avô.
Apostaram no segundo filho. “Epá não, não jogues a manilha já, que é cedo! Joga antes o seis de paus, que é palha, mas da altita, só para não dar uma de miserável...”. Não herdei o cabelo Whitney Houston da minha mãe. I have nothing, mas uma salganhada de pontas espigadas que se encontram em pé de guerra, num conflito político armado: “hoje sou liso mas o aglomerado de pelos atrás da orelha reivindicaram o direito de serem encaracolados.
Os protestantes albinos deslocam-se a ritmo acelerado e descaem a fronteira para a testa. O presidente já ameaçou lançar o spray hidratante de abacate nas pontas e garante que recorrerá à escova para cessar o conflito. Devolvo a emissão ao estúdio. João Paulo.” Não herdei o gémeo esculpido por Miguel Ângelo na perna do meu pai, o rebuscado humor ou a desconcertante paixão pela adrenalina dos desportos radicais. Fiquei com a unha do dedo grande com tendência para encravar, alergia aos pólenes e senilidade precoce (“Calma, onde é que deixei o cartão multibanco? A carteira? Epá, devo tê-la deixado no carro... Espera lá, alguém viu a chave do carro?”).
Eu sou aquele membro que em jantares de família tem de andar sempre acompanhada com alguém que prove a minha filiação, senão os tios em terceiro grau vão achar que me infiltrei só para petiscar os croquetes e comer o semifrio de frutos vermelhos. “Então e tu, és filha de quem?” “Do carteiro, só pode...”
Caminho de Abril - maria augusta torcato » 2024-04-22 » Maria Augusta Torcato Olho para o meu caminho e fico contente. Acho mesmo que fiz o caminho de Abril. O caminho que Abril representa. No entanto, a realidade atual e os desafios diários levam-me a desejar muito que este caminho não seja esquecido, não por querer que ele se repita, mas para não nos darmos conta, quase sem tempo de manteiga nos dentes, que estamos, outra vez, lá muito atrás e há que fazer de novo o caminho com tudo o que isso implica e que hoje seria incompreensível e inaceitável. |
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia » 2024-04-10 » Jorge Carreira Maia Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. |
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
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» 2024-04-22
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