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Jogada de mestre - antónio mário santos

Opinião  »  2023-11-21  »  António Mário Santos

Deixem-me ser claro. A crise em que Portugal se encontra não me apanhou de surpresa. A maioria absoluta do Partido Socialista submeteu-se, desde as eleições legislativas, a quem lhe dera origem: António Costa. Por sua vez, a sua maioria na Assembleia retirara-lhe capacidade de intervenção partidária, submetida aos interesses do vencedor eleitoral, cuja palavra se tornou magister dixit. Quem se lhe opusesse, só tinha que se marginalizar antes que fosse empurrado para um exílio forçado e sem limite assegurado. O governo, escolhido a dedo, não passou duma corte doméstica do imperador, onde foram incluídos os mais badalados (pelos meios informativos) seus sucessores, de forma a concretizar um velho provérbio «mais vale um pássaro na mão que dois a voar». Nenhuma palavra, nenhuma atitude ministerial, valeu sem o seu consenso. As poucas excepções que surgiram deram com os burrinhos na água e a expulsão do rebanho obediente à vara e à flauta do pastor.

O país socialista, na política, na banca, nas finanças, na função pública, no sindicalismo, descerebrou-se. António Costa dixit, Portugal fecit. A Europa, por sua vez, escutava-o. Pressentia-se que o seu futuro seria a cabeça do império, a presidência do secretariado da União Europeia.

Na pátria não havia partidos opositores, nem à esquerda, nem à direita, que conseguissem macular ou alterar a seu pensamento majestático.

Havia, desde início da sua vitória, um opositor distinto, que lhe marcou a trajectória e definiu timings de pedras no caminho, como um anjo da guarda duma democracia muito sui generis: liberal, conservadora, cheia de tiques misericordiosos, muito adepta dum catolicismo renovado, mas prudente na manutenção dos seus privilégios - o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Lateral, na corda bamba, um terceiro poder, o judicial, que, na prática, ao longo destes quase cinquenta anos, criou mais anticorpos populacionais que soluções de justiça. A sua isenção, na balança da equidade, raro se equilibrou, entre a politização da justiça ou a judicialização da política.

Basta seguir a opinião dos comentadores encartados da imprensa e televisões nacionais, para se duvidar, nesta farsa mal enjorcada, se foi o rato que imaginativamente roubou o queijo da ratoeira, se foi esta que, mal ajustada (de propósito? Por incompetência?) deixou o rato abocanhar impunemente o queijo da sua detenção.

À Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política. Só que à direita e à esquerda, os grandes processos políticos nacionais nunca foram resolvidos, e com isso ganharam os meios de comunicação social, que venderam, como oiro sob azul, as estórias duma História bem escondida.

Neste entretém, a realidade social do povo português cada vez mais se distanciou da dos países da União Europeia. Em quase todas os grupos sociais trabalhadores, a imagem do Zé Povinho do Bordalo Pinheiro, de bolsos vazios, ganhava força. Enquanto a economia melhorava, o povo empobrecia. A instabilidade, a inflacção, o desemprego, a marginalização social crescente, as guerras, a colonização da Europa por uma América em estado de depressão suicida, empurraram os diversos grupos sociais, do proletariado à classe média, para uma desespero de sobrevivência, que cada vez mais conflituava com o poder político socialista, sobranceiro, incapaz de se libertar de compromissos nunca clarificados, em que as leis eram torcidas e retorcidas, conforme a solicitações às sociedades de advogados ao seu serviço.

A justiça, uma vez mais, agiu com fanfarra e espectáculo. E os órgãos informativos actuaram, utilizados para a divulgação do que deveria ser ou estar em segredo de justiça, colocando no palco da peça estreada, os cenários que o ponto lhes foi segredando como necessários.

Confesso que optei por duvidar da série telenovelística que, desde o interrogativo pedido de demissão de António Costa, aprovação aos bochechos com resultados só a posteriori de Marcelo Rebelo de Sousa, ao empate no Conselho de Estado, aos enganos da justiça, à defesa/acusação de Costa num salve-se quem puder, com tiroteio para todos os lados, presidência, justiça, amigos, que deixa mais dúvidas do que certezas do que realmente originou o seu pedido de demissão.

Pessoalmente, creio que António Costa compreendera que o seu reinado absoluto já não tinha pés para andar. As crises socioprofissionais tendiam a agravar-se, e os seus compromissos, a nível europeu, conflituavam com as medidas que era necessário tomar, mas que as amarras da sua aventura totalitária proibiam. Colocou o país, com a leveza saltitante do Presidente da República, numa situação de imaginativa legalidade não constitucional, com um governo demitido só depois de, um primeiro-ministro idem, um orçamento a aprovar dum governo a demitir só depois de aprovar, mas com todos já com ordem de saída e eleições marcadas para novos governos, nunca mais de maioria absoluta, e que irão alterar e desmontar quanto possível este orçamento a aprovar nos dias próximos.

E passa da gestão maioritária, para a gestão corrente, a cumprir o que a crise aconselhava dever ser posto de lado e ter outro responsável. Ainda por cima, com o ar de ofendido por o Presidente da República ter aceite o seu pedido de demissão e optar por eleições gerais, quando a sua maioria absoluta surgiu dum processo idêntico, por ele exigido.

Acredite-se no que se quiser. A minha opinião é que António Costa é uma raposa velha em política e, percebendo que se encontrava cada vez mais encostado à parede e o seu trono em riscos de desabar, jogou a cartada de passar para outros a sua saída pela porta da frente da residência do primeiro-ministro, mas com tempo certo e a casa arrumada a seu modo.

 

 

 

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