O lugar do outro - ana lúcia cláudio
"O que está aqui em causa é mais genérico e grave que o “simples” racismo."
Numa das minhas primeiras saídas em lazer após o confinamento forçado, jantava numa esplanada de Lisboa. De olhos postos no rio Tejo, ouvia com atenção uma prima que, a propósito da picanha que nos preparávamos para degustar, se queixava dos olhares recriminatórios e dos comentários de reprovação de que é vítima, sempre que à questão «Quer a carne bem ou mal passada?», opta pela primeira hipótese. A começar pelos funcionários dos restaurantes que, desde logo, a avisam, nem sempre da forma mais delicada, que a carne mais bem passada poderá não ser tão tenra. Passando pelos amigos e companheiros de refeição que, diz ela, se saem quase sempre com o habitual comentário, em jeito de pergunta retórica e jocosa: «Gostas de “sola de sapato”?!» Reiterava-me ela que, se lhe dão essa oportunidade e até a questionam como prefere o dito alimento, tem todo o direito de comer a carne tenra, em sangue, rija ou “sola de sapato”, uma vez que até é ela que paga a conta no final. Assim como jamais se insurge, acrescenta, contra aqueles que têm a opção contrária e, nas suas palavras, “ainda comem a carne com a vaca viva”! «Uma espécie de bullying que sofremos os que gostamos da carne bem passada. Hás-de reparar.» Advertiu-me ela, uma vez que, também eu, prefiro a coisa mais rija.
Algo tão simples e banal como isto é um pequeno exemplo da intolerância que se vive nos dias de hoje perante opiniões e gostos distintos dos nossos. E da dificuldade em aceitar tudo o que é diferente, numa miopia que nos impede de olhar com clareza para além do nosso umbigo. Os ecos desta conversa soaram-me agora com mais força à luz dos últimos acontecimentos na sequência da inqualificável morte de um cidadão de raça negra às mãos (ou pernas, no caso) de um polícia branco norte-americano e do consequente extremar de ódios raciais de parte a parte, tendo culminado até com a igualmente inqualificável destruição de estátuas e monumentos que assinalam determinadas figuras e acontecimentos da história mundial.
Se alguns destes comportamentos não são de agora, pergunto-me se as sequelas do confinamento terão ajudado a exacerbar reacções deste tipo. Esta escalada de violência, além de não ter nada de positivo (como de resto a violência nunca tem), se não fosse trágica seria nalguns casos quase anedótica quando nos apercebemos que há muitos manifestantes que não sabem porque aderem aos “movimentos” e apenas se juntam à confusão, numa atitude típica de claques de futebol que, mais do que apreciar o jogo, apreciam a confusão que os aglomerados potenciam. E quando se destroem símbolos históricos, que até defendiam no passado a mesma causa que agora advogam, com um total desconhecimento sobre acontecimentos.
O que está aqui em causa é mais genérico e grave que o “simples” racismo. É mais uma vez a intolerância e a total falta de respeito pelo que é diferente de nós. Seja na raça, no género, nos costumes, na cultura, na religião, ou na política, tendemos sempre a medir os outros pela nossa bitola e a olhar com desfavor e sentimento de superioridade para tudo o que sai fora das fronteiras daquilo que nós acreditamos como certo, normal e razoável. Achamos estranhos os adereços que se usam em determinadas tribos africanas, questionamos as burcas a que estão “obrigadas” as mulheres de determinados países e até os jejuns “forçados” em nome de uma religião. Porquê? Simplesmente porque não crescemos assim, porque para nós o certo é o “ocidental”, aquilo que nos foi ensinado e que tomamos por único e normal com total desrespeito por todas as outras “normalidades” à nossa volta.
O lugar do outro - ana lúcia cláudio
O que está aqui em causa é mais genérico e grave que o “simples” racismo.
Numa das minhas primeiras saídas em lazer após o confinamento forçado, jantava numa esplanada de Lisboa. De olhos postos no rio Tejo, ouvia com atenção uma prima que, a propósito da picanha que nos preparávamos para degustar, se queixava dos olhares recriminatórios e dos comentários de reprovação de que é vítima, sempre que à questão «Quer a carne bem ou mal passada?», opta pela primeira hipótese. A começar pelos funcionários dos restaurantes que, desde logo, a avisam, nem sempre da forma mais delicada, que a carne mais bem passada poderá não ser tão tenra. Passando pelos amigos e companheiros de refeição que, diz ela, se saem quase sempre com o habitual comentário, em jeito de pergunta retórica e jocosa: «Gostas de “sola de sapato”?!» Reiterava-me ela que, se lhe dão essa oportunidade e até a questionam como prefere o dito alimento, tem todo o direito de comer a carne tenra, em sangue, rija ou “sola de sapato”, uma vez que até é ela que paga a conta no final. Assim como jamais se insurge, acrescenta, contra aqueles que têm a opção contrária e, nas suas palavras, “ainda comem a carne com a vaca viva”! «Uma espécie de bullying que sofremos os que gostamos da carne bem passada. Hás-de reparar.» Advertiu-me ela, uma vez que, também eu, prefiro a coisa mais rija.
Algo tão simples e banal como isto é um pequeno exemplo da intolerância que se vive nos dias de hoje perante opiniões e gostos distintos dos nossos. E da dificuldade em aceitar tudo o que é diferente, numa miopia que nos impede de olhar com clareza para além do nosso umbigo. Os ecos desta conversa soaram-me agora com mais força à luz dos últimos acontecimentos na sequência da inqualificável morte de um cidadão de raça negra às mãos (ou pernas, no caso) de um polícia branco norte-americano e do consequente extremar de ódios raciais de parte a parte, tendo culminado até com a igualmente inqualificável destruição de estátuas e monumentos que assinalam determinadas figuras e acontecimentos da história mundial.
Se alguns destes comportamentos não são de agora, pergunto-me se as sequelas do confinamento terão ajudado a exacerbar reacções deste tipo. Esta escalada de violência, além de não ter nada de positivo (como de resto a violência nunca tem), se não fosse trágica seria nalguns casos quase anedótica quando nos apercebemos que há muitos manifestantes que não sabem porque aderem aos “movimentos” e apenas se juntam à confusão, numa atitude típica de claques de futebol que, mais do que apreciar o jogo, apreciam a confusão que os aglomerados potenciam. E quando se destroem símbolos históricos, que até defendiam no passado a mesma causa que agora advogam, com um total desconhecimento sobre acontecimentos.
O que está aqui em causa é mais genérico e grave que o “simples” racismo. É mais uma vez a intolerância e a total falta de respeito pelo que é diferente de nós. Seja na raça, no género, nos costumes, na cultura, na religião, ou na política, tendemos sempre a medir os outros pela nossa bitola e a olhar com desfavor e sentimento de superioridade para tudo o que sai fora das fronteiras daquilo que nós acreditamos como certo, normal e razoável. Achamos estranhos os adereços que se usam em determinadas tribos africanas, questionamos as burcas a que estão “obrigadas” as mulheres de determinados países e até os jejuns “forçados” em nome de uma religião. Porquê? Simplesmente porque não crescemos assim, porque para nós o certo é o “ocidental”, aquilo que nos foi ensinado e que tomamos por único e normal com total desrespeito por todas as outras “normalidades” à nossa volta.
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |