A falta de cidadania de quem a recusa - ana lúcia cláudio
"Não temos de concordar com tudo o que nos é imposto numa democracia representativa"
Os primeiros dias de regresso às aulas têm sido marcados por dois grandes assuntos. O primeiro, o que nos assola a todos desde Março e que obrigou os responsáveis das escolas a definir e adaptar estratégias e formas de prevenção do coronavírus, na sequência das directrizes definidas pela Direcção-Geral de Saúde.
O segundo, aquele que, se não fossem as proporções entretanto tomadas, seria apenas um “fait divers” da “rentrée”. Tem andados nas bocas do mundo e nas parangonas da imprensa a discussão sobre se a disciplina de Cidadania, introduzida há uns anos nos currículos do ensino básico, deverá ou não passar a revestir carácter facultativo.
Independentemente de estar em causa uma disciplina que deve ensinar e sensibilizar adolescentes para as regras de convivência e respeito por que deveremos pautar a nossa conduta enquanto cidadãos, temem alguns que os currículos andem ao sabor das ideologias, correndo-se o risco de evangelizar num sentido ou noutro as nossas inocentes criancinhas.
Como se as boas regras, a ética e a sã convivência pudessem mudar ao sabor das ideologias. Como se o facto de se discutir assuntos importantes na escola impedisse os pais ou os dispensasse de fazer o mesmo em casa. Ou, como se nestas idades, os adolescentes bebessem tudo o que lhes é dito sem estarem constantemente a questionar os adultos e não fossem, na maior parte das vezes, do contra pelo simples prazer de o ser.
Se a discussão sobre o carácter facultativo ou obrigatório da disciplina me parece admissível, o mesmo não acontece com os contornos do caso concreto, sobejamente conhecido, que lhe deu origem. Questiona-se se devem reprovar por faltas os alunos que por iniciativa dos pais deixaram de a frequentar. Ou melhor, se ainda que com base numa decisão discutível constar de um currículo obrigatório, podem os pais e encarregados de educação potenciar o incumprimento, fazendo com que por sua iniciativa os seus filhos não frequentem as aulas.
Faz-me lembrar uma altura, na escola primária do meu filho mais novo, em que a professora só enviava trabalhos de casa se os pais concordassem. Tal situação levava o meu petiz a vangloriar-se perante os amigos que, como a mãe era contra os trabalhos de casa, estava livre de os fazer. E sou-o, de facto. Contra os trabalhos de casa sem sentido e em quantidade exagerada, sobretudo. Mas, obviamente que, quando são obrigatórios podendo penalizar o percurso escolar dos alunos, eles tornam-se nisso mesmo, obrigatórios para os meus filhos e para os dos outros que assim terão de os fazer sem pestanejar, discuta-se ou não a razoabilidade dos mesmos.
A mesma ordem de razões penso eu que se aplica na questão que verso neste texto. Não temos de concordar com tudo o que nos é imposto numa democracia representativa. No entanto, ainda que não seja isso que defendamos nas instâncias próprias e da forma correcta, compete-nos enquanto cidadãos cumprir o que nos é imposto pela sociedade humanista e pelo sistema político democrático em que vivemos.
Por último, duas recentes achas para esta fogueira e que me levam a reconsiderar o que referi acima sobre o que considerava ser a razoabilidade da discussão sobre o eventual carácter facultativo da disciplina em causa.
A petição, recentemente subscrita e apresentada por um eurodeputado da nação, que resvala desde logo para algumas pérolas quando, ao propor que se expurgue da disciplina o que é político, se insurge contra aquilo que denomina “toda uma doutrina de género”. Não concretiza a que pretende referir-se, mas infelizmente imaginamos que possa ir na esteira do que também por estes dias veio a público sobre um professor da (minha) faculdade de Direito de Lisboa, que numa revista por esta editada defende enormidades contra aquilo que neste século devíamos dar com adquirido e inquestionável: a igualdade de direitos, deveres e oportunidades entre homens e mulheres. Num discurso que, se não fosse trágico poderia parecer anedótico, compara o feminismo ao nazismo, denominando o primeiro como o “mais criminoso regime da história”.
Pergunto eu: é isto que se pretende afastar com disciplinas como cidadania? Se sim, sentencio: disciplina obrigatória.
A falta de cidadania de quem a recusa - ana lúcia cláudio
Não temos de concordar com tudo o que nos é imposto numa democracia representativa
Os primeiros dias de regresso às aulas têm sido marcados por dois grandes assuntos. O primeiro, o que nos assola a todos desde Março e que obrigou os responsáveis das escolas a definir e adaptar estratégias e formas de prevenção do coronavírus, na sequência das directrizes definidas pela Direcção-Geral de Saúde.
O segundo, aquele que, se não fossem as proporções entretanto tomadas, seria apenas um “fait divers” da “rentrée”. Tem andados nas bocas do mundo e nas parangonas da imprensa a discussão sobre se a disciplina de Cidadania, introduzida há uns anos nos currículos do ensino básico, deverá ou não passar a revestir carácter facultativo.
Independentemente de estar em causa uma disciplina que deve ensinar e sensibilizar adolescentes para as regras de convivência e respeito por que deveremos pautar a nossa conduta enquanto cidadãos, temem alguns que os currículos andem ao sabor das ideologias, correndo-se o risco de evangelizar num sentido ou noutro as nossas inocentes criancinhas.
Como se as boas regras, a ética e a sã convivência pudessem mudar ao sabor das ideologias. Como se o facto de se discutir assuntos importantes na escola impedisse os pais ou os dispensasse de fazer o mesmo em casa. Ou, como se nestas idades, os adolescentes bebessem tudo o que lhes é dito sem estarem constantemente a questionar os adultos e não fossem, na maior parte das vezes, do contra pelo simples prazer de o ser.
Se a discussão sobre o carácter facultativo ou obrigatório da disciplina me parece admissível, o mesmo não acontece com os contornos do caso concreto, sobejamente conhecido, que lhe deu origem. Questiona-se se devem reprovar por faltas os alunos que por iniciativa dos pais deixaram de a frequentar. Ou melhor, se ainda que com base numa decisão discutível constar de um currículo obrigatório, podem os pais e encarregados de educação potenciar o incumprimento, fazendo com que por sua iniciativa os seus filhos não frequentem as aulas.
Faz-me lembrar uma altura, na escola primária do meu filho mais novo, em que a professora só enviava trabalhos de casa se os pais concordassem. Tal situação levava o meu petiz a vangloriar-se perante os amigos que, como a mãe era contra os trabalhos de casa, estava livre de os fazer. E sou-o, de facto. Contra os trabalhos de casa sem sentido e em quantidade exagerada, sobretudo. Mas, obviamente que, quando são obrigatórios podendo penalizar o percurso escolar dos alunos, eles tornam-se nisso mesmo, obrigatórios para os meus filhos e para os dos outros que assim terão de os fazer sem pestanejar, discuta-se ou não a razoabilidade dos mesmos.
A mesma ordem de razões penso eu que se aplica na questão que verso neste texto. Não temos de concordar com tudo o que nos é imposto numa democracia representativa. No entanto, ainda que não seja isso que defendamos nas instâncias próprias e da forma correcta, compete-nos enquanto cidadãos cumprir o que nos é imposto pela sociedade humanista e pelo sistema político democrático em que vivemos.
Por último, duas recentes achas para esta fogueira e que me levam a reconsiderar o que referi acima sobre o que considerava ser a razoabilidade da discussão sobre o eventual carácter facultativo da disciplina em causa.
A petição, recentemente subscrita e apresentada por um eurodeputado da nação, que resvala desde logo para algumas pérolas quando, ao propor que se expurgue da disciplina o que é político, se insurge contra aquilo que denomina “toda uma doutrina de género”. Não concretiza a que pretende referir-se, mas infelizmente imaginamos que possa ir na esteira do que também por estes dias veio a público sobre um professor da (minha) faculdade de Direito de Lisboa, que numa revista por esta editada defende enormidades contra aquilo que neste século devíamos dar com adquirido e inquestionável: a igualdade de direitos, deveres e oportunidades entre homens e mulheres. Num discurso que, se não fosse trágico poderia parecer anedótico, compara o feminismo ao nazismo, denominando o primeiro como o “mais criminoso regime da história”.
Pergunto eu: é isto que se pretende afastar com disciplinas como cidadania? Se sim, sentencio: disciplina obrigatória.
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![]() Sinto que estou sempre a dizer o mesmo, que os meus textos são repetições cíclicas dos mesmos assuntos e que estes são, só por si, repetições cíclicas e enfadonhas deles próprios. |
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