Aquela máquina - carlos paiva
Opinião » 2022-06-04"“Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português."
Somos conhecidos no mundo inteiro como o povo do desenrasca. Não é pelo vinho do Porto, não é pelo CR7, não é pelos descobrimentos, não é pelo clima e pelas praias. É pelo desenrasca. Como testemunham os hábitos de leitura nacionais, temos uma facilidade nata em absorver conhecimento pela prática. Pela teoria, somos alérgicos. Quem ler o manual antes de tentar colocar qualquer equipamento a funcionar, é sumariamente achincalhado por todos como maricas e tótó. Experimenta-se tudo e mais um par de botas primeiro. Só quando nada resulta, então, recorre-se ao manual. Ainda assim, a contra vontade, emitindo em voz alta imensas críticas à organização e redacção do mesmo, impregnando as inflexões com o maior desdém possível.
Muitas são as histórias na mitologia popular acerca de problemas insolúveis num qualquer estaleiro ou fábrica num país distante, em que chamam o português e ele põe aquilo a funcionar, o que quer que “aquilo” seja, desenrascando a situação, salvando o mundo de desastre iminente. Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto remoto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português. Recrutado para equipa de limpeza e destacado de urgência para a linha de produção pelos quadros superiores com aval da administração, aflita. Macacão seboso, barba de três dias, cigarro ao canto da boca, arrastando atrás de si uma grade de minis, aproxima-se da máquina, cospe para o chão, limpa o suor da testa com algumas folhas amarfanhadas do manual técnico, faz saltar a carica de uma mini com o isqueiro Bic que imediatamente se infiltra na máquina por uma fresta que ninguém sabia lá estar (nem o manual técnico), dá duas goladas na cerveja, senta-se na grade de minis e pronuncia estoicamente a frase mágica que dá início a todo o processo: “É que tá aqui uma porra!”
Com o maior desleixo pela segurança, a sua, a da máquina, e restantes trabalhadores à sua volta, começa a intervenção obedecendo a uma metodologia apenas compreensível a si. Desconhecedores, ignorantes destas coisas, poderiam interpretá-la erradamente como “chafurdar”. Passado algum tempo, o português emerge das entranhas da máquina, ainda mais sujo do que quando entrou, exibindo uma carica de mini segura entre o indicador e o polegar, soltando um sonoro “Ahh!” com ar vitorioso. Reacende a beata que entretanto se apagou, abre outra mini, disfarçadamente cuidadoso para a carica não sair disparada, dirige-se ao chefe da linha de produção e diz: “Podem ligar a máquina. Está desenrascado.” Dá duas goladas seguidas na cerveja e fica a fitar a máquina com o olhar parado. Ligam a máquina e, “aquilo” funciona. Mais ruidosa que antes, mais fumarenta que antes, mas funciona. Os quadros superiores voltam finalmente a respirar, a administração sorri, o português sorri.
Chegados a este ponto, perfilam-se imediatamente três certezas: Primeira certeza, o design sueco fica irremediavelmente comprometido, passando à designação artística oficial de chaço. Segunda certeza, a engenharia alemã fica reduzida ao ridículo por uma carica de mini. Terceira certeza, daqui em diante apenas e só o português sabe como pôr a máquina a funcionar. Independentemente do número de técnicos especializados japoneses que atirem a ela.
Prometeu-se calçada para o Largo do Lamego. Em vez disso aplicou-se alcatrão. Está desenrascado. Prometeu-se ligar o escoamento à rede de esgotos. Em vez disso, despeja diretamente para o rio. Está desenrascado. Deu-se a obra como oficialmente concluída quando ela ia a meio. Está desenrascado. Prometeu-se competência. Em vez disso, obtivemos irresponsabilidade. Está desenrascado. É aquela máquina.
“Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português.
Aquela máquina - carlos paiva
Opinião » 2022-06-04“Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português.
Somos conhecidos no mundo inteiro como o povo do desenrasca. Não é pelo vinho do Porto, não é pelo CR7, não é pelos descobrimentos, não é pelo clima e pelas praias. É pelo desenrasca. Como testemunham os hábitos de leitura nacionais, temos uma facilidade nata em absorver conhecimento pela prática. Pela teoria, somos alérgicos. Quem ler o manual antes de tentar colocar qualquer equipamento a funcionar, é sumariamente achincalhado por todos como maricas e tótó. Experimenta-se tudo e mais um par de botas primeiro. Só quando nada resulta, então, recorre-se ao manual. Ainda assim, a contra vontade, emitindo em voz alta imensas críticas à organização e redacção do mesmo, impregnando as inflexões com o maior desdém possível.
Muitas são as histórias na mitologia popular acerca de problemas insolúveis num qualquer estaleiro ou fábrica num país distante, em que chamam o português e ele põe aquilo a funcionar, o que quer que “aquilo” seja, desenrascando a situação, salvando o mundo de desastre iminente. Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto remoto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português. Recrutado para equipa de limpeza e destacado de urgência para a linha de produção pelos quadros superiores com aval da administração, aflita. Macacão seboso, barba de três dias, cigarro ao canto da boca, arrastando atrás de si uma grade de minis, aproxima-se da máquina, cospe para o chão, limpa o suor da testa com algumas folhas amarfanhadas do manual técnico, faz saltar a carica de uma mini com o isqueiro Bic que imediatamente se infiltra na máquina por uma fresta que ninguém sabia lá estar (nem o manual técnico), dá duas goladas na cerveja, senta-se na grade de minis e pronuncia estoicamente a frase mágica que dá início a todo o processo: “É que tá aqui uma porra!”
Com o maior desleixo pela segurança, a sua, a da máquina, e restantes trabalhadores à sua volta, começa a intervenção obedecendo a uma metodologia apenas compreensível a si. Desconhecedores, ignorantes destas coisas, poderiam interpretá-la erradamente como “chafurdar”. Passado algum tempo, o português emerge das entranhas da máquina, ainda mais sujo do que quando entrou, exibindo uma carica de mini segura entre o indicador e o polegar, soltando um sonoro “Ahh!” com ar vitorioso. Reacende a beata que entretanto se apagou, abre outra mini, disfarçadamente cuidadoso para a carica não sair disparada, dirige-se ao chefe da linha de produção e diz: “Podem ligar a máquina. Está desenrascado.” Dá duas goladas seguidas na cerveja e fica a fitar a máquina com o olhar parado. Ligam a máquina e, “aquilo” funciona. Mais ruidosa que antes, mais fumarenta que antes, mas funciona. Os quadros superiores voltam finalmente a respirar, a administração sorri, o português sorri.
Chegados a este ponto, perfilam-se imediatamente três certezas: Primeira certeza, o design sueco fica irremediavelmente comprometido, passando à designação artística oficial de chaço. Segunda certeza, a engenharia alemã fica reduzida ao ridículo por uma carica de mini. Terceira certeza, daqui em diante apenas e só o português sabe como pôr a máquina a funcionar. Independentemente do número de técnicos especializados japoneses que atirem a ela.
Prometeu-se calçada para o Largo do Lamego. Em vez disso aplicou-se alcatrão. Está desenrascado. Prometeu-se ligar o escoamento à rede de esgotos. Em vez disso, despeja diretamente para o rio. Está desenrascado. Deu-se a obra como oficialmente concluída quando ela ia a meio. Está desenrascado. Prometeu-se competência. Em vez disso, obtivemos irresponsabilidade. Está desenrascado. É aquela máquina.
“Qualquer fabulosa máquina, projectada pela engenharia alemã com design sueco e fabrico japonês que empanque por motivo desconhecido em qualquer canto do planeta, arrisca-se a enfrentar um português.
![]() Até os mais distraídos na escola, fui um deles, se devem lembrar do princípio mais básico da física. Para qualquer acção, há uma reacção. Por incrível que pareça, por muito tosco que seja, é o princípio base que orienta e rege todo o método científico, até o de ponta. |
![]() O conflito em curso na Ucrânia veio dar maior visibilidade à sua capital e sede de governo, Kiev. Como todos os cidadãos, vejo com uma sensação de perda a destruição das estruturas materiais e das vidas, mas igualmente das irreparáveis, no curto prazo, fracturas nas relações humanas. |
![]() Está calor. Em vez de falar de política, como habitualmente, o melhor é derivar e falar de literatura. Não é que o assunto interesse mais aos portugueses do que a política. Não interessa, mas ajuda a suportar o calor e a inflação. |
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![]() Sempre quis ser espanhola. Gosto e invejo o ritual das cañas e pinchos, ao mesmo tempo que me questiono, intrigada, sobre onde enfiam as crianças para poderem passar os fins de tarde na esplanada. Adoro o conceito. Sempre quis ser espanhola. |
![]() Dos três princípios da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – este último permaneceu sempre numa espécie de limbo. Os grandes debates e os grandes conflitos ideológicos estruturaram-se em torno dos outros dois. |
![]() Há longos anos que desafiamos a sorte com a tragédia logo ali à espreita no centro histórico de Torres Novas. As derrocadas das casas abandonadas sucedem-se, felizmente ainda ninguém foi apanhado. A última, na rua da Corrente, veio apenas confirmar a sorte que temos tido e a tragédia que está por perto. |
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