A avó Augusta, a foice e a vassoura
Opinião » 2018-07-12 » Maria Augusta Torcato"Todos os dias, quando contorno uma determinada rotunda, evidenciam-se ao meu olhar umas fogosas ervas, que não sei nomear,"
Esta crónica vai apresentar o formato de duas em uma. É que, apesar das temáticas e problemáticas quotidianas fervilharem na minha cabecinha, não tenho tido tempinho algum para escrever. E o ato de escrever exige pelo menos um bocadinho de tempo. Não é algo que se faça “vou ali e já volto”. Pelo menos comigo não é assim. Mas também não é nenhuma volta ao mundo. E esta eu gostaria de fazer na realidade, ter disponibilidade financeira para isso. Mas, quanto mais trabalho, menos recebo, ou então, recebendo o mesmo há tantos anos, e com as coisas a aumentar é como se recebesse menos. Menos mesmo! Mas vamos ao que interessa, que me dão um número limitado de palavras para usar e eu, abusadora, ultrapasso-as sempre. Mas, a verdade, é que eu gosto mesmo de palavras!
Os meses de maio e junho são meses santos ou com santos. Corria o início de maio, ali pelo dia três (ficou-me na memória, porque eu tenho uma memória de uma manada de elefantes apesar de já ter perdido alguns – isto espanta os meus alunos quando os surpreendo com alguma lembrança que eles pensavam que eu já tinha perdido!!!), quando, a caminho da escola, pelas oito e quinze da manhã, me surpreendo com um garrafão plástico cortado ao meio, ao lado de uns buraquitos que salpicavam a rua e num desses buraquitos mais profundo alguém tinha depositado um ramalhete, não “rubro de papoilas”, mas de malmequeres selvagens, campestres daqueles bem amarelinhos. Claro que me desviei, não só para me safar do meio garrafão de plástico, mas para não pisar os malmequeres. Aliás, já me andava a desviar há muito tempo, mas era para a roda do carro não cair no buraco. Todavia, como sou um bocadinho azelha, não caía naquele e ia cair noutro. Não tinha fuga possível.
Nessa manhã, descrevi a algumas das minhas colegas, com recurso à sinestesia, a imagem que me havia surpreendido e acabámos a valorizar o ato, a subtileza e a ironia de quem o praticou para chamar a atenção para algo que andava a prejudicar quem por ali passava. Mas, o mais interessante, é que no dia imediatamente seguinte os buraquitos haviam sido tapados, mesmo que com pouca perfeição. Os tais buraquitos lá se viram preenchidos por uns pedaços de alcatrão. Fiquei mesmo agradecida “a um ser desconhecido”. Até me lembrei do título da obra de Steinbeck, “A um Deus desconhecido”, se bem que o conteúdo da mesma nada tenha a ver com a simplicidade, mas frutífero ato que descrevi. Por isso, agradeço, mesmo que já esteja atrasada no agradecimento, a esse “ser desconhecido”, que, com uns simples, rústicos, mas, no fundo, majestosos malmequeres amarelos, contribuiu para que os buracos que começavam a grassar pela rua fossem, pelos menos alguns, tapadinhos.
Agora, a outra crónica, que também se pode cruzar com o espírito “epopeico” do “ser desconhecido”.
Todos os dias, quando contorno uma determinada rotunda, evidenciam-se ao meu olhar umas fogosas ervas, que não sei nomear, mas que me lembram as vassouras que a minha avó Augusta, de quem herdei o nome, e que teria hoje 107 anos, se fosse viva, fazia e usava para varrer a casa, o quintal e a rua. Não me lembro nunca de lhe ver outro tipo de vassoura, mesmo que a modernidade já lhe permitisse ter acesso a um objeto que a impediria de andar dobradinha sobre si própria. Talvez tivessem sido esses gestos repetitivos e essa postura que a fizeram ser sempre esguia, magrinha e elegante, como hoje eu gostaria de ser. Ou então talvez tivessem sido as dificuldades da vida, de quem trabalhava no campo, dependente de todas as intempéries e surpresas e tinha de alimentar seis filhos, a maioria das vezes sem condições para isso. Imagino a sua aflição e isso perturba-me, muitas vezes, mesmo que os tempo tenham mudado.
Mas, a lembrança da minha avó é permanente. Por isso, quando vejo aquelas ervas, altas, pomposas, convidando-nos para as cortarmos e juntarmos os caules, bem apertadinhos com uns baracitos que os rodeariam e terminariam num ou dois nós, e daí nasceriam umas vassouras, não consigo deixar de pensar que, se a minha avó fosse viva e estivesse por aqui, nesta terra a que ela nunca veio, agarraria numa foice e cortaria aquelas ervas todas e faria umas boas vassouras, para ela, para mim e para eu oferecer a quem quisesse. Aliás, essa atitude ajudaria a resolver muitas das exigências que parece que se fazem hoje, mas não a todos nem para todos, que é a limpeza de terrenos e bermas das estradas.
O junho dos santos populares foi fecundo nas condições que fizeram aquelas ervas punjantes. Que belas vassouras elas dariam! Era preciso que a avó Augusta aqui estivesse para, com a sua foice, as cortar.
A avó Augusta, a foice e a vassoura
Opinião » 2018-07-12 » Maria Augusta TorcatoTodos os dias, quando contorno uma determinada rotunda, evidenciam-se ao meu olhar umas fogosas ervas, que não sei nomear,
Esta crónica vai apresentar o formato de duas em uma. É que, apesar das temáticas e problemáticas quotidianas fervilharem na minha cabecinha, não tenho tido tempinho algum para escrever. E o ato de escrever exige pelo menos um bocadinho de tempo. Não é algo que se faça “vou ali e já volto”. Pelo menos comigo não é assim. Mas também não é nenhuma volta ao mundo. E esta eu gostaria de fazer na realidade, ter disponibilidade financeira para isso. Mas, quanto mais trabalho, menos recebo, ou então, recebendo o mesmo há tantos anos, e com as coisas a aumentar é como se recebesse menos. Menos mesmo! Mas vamos ao que interessa, que me dão um número limitado de palavras para usar e eu, abusadora, ultrapasso-as sempre. Mas, a verdade, é que eu gosto mesmo de palavras!
Os meses de maio e junho são meses santos ou com santos. Corria o início de maio, ali pelo dia três (ficou-me na memória, porque eu tenho uma memória de uma manada de elefantes apesar de já ter perdido alguns – isto espanta os meus alunos quando os surpreendo com alguma lembrança que eles pensavam que eu já tinha perdido!!!), quando, a caminho da escola, pelas oito e quinze da manhã, me surpreendo com um garrafão plástico cortado ao meio, ao lado de uns buraquitos que salpicavam a rua e num desses buraquitos mais profundo alguém tinha depositado um ramalhete, não “rubro de papoilas”, mas de malmequeres selvagens, campestres daqueles bem amarelinhos. Claro que me desviei, não só para me safar do meio garrafão de plástico, mas para não pisar os malmequeres. Aliás, já me andava a desviar há muito tempo, mas era para a roda do carro não cair no buraco. Todavia, como sou um bocadinho azelha, não caía naquele e ia cair noutro. Não tinha fuga possível.
Nessa manhã, descrevi a algumas das minhas colegas, com recurso à sinestesia, a imagem que me havia surpreendido e acabámos a valorizar o ato, a subtileza e a ironia de quem o praticou para chamar a atenção para algo que andava a prejudicar quem por ali passava. Mas, o mais interessante, é que no dia imediatamente seguinte os buraquitos haviam sido tapados, mesmo que com pouca perfeição. Os tais buraquitos lá se viram preenchidos por uns pedaços de alcatrão. Fiquei mesmo agradecida “a um ser desconhecido”. Até me lembrei do título da obra de Steinbeck, “A um Deus desconhecido”, se bem que o conteúdo da mesma nada tenha a ver com a simplicidade, mas frutífero ato que descrevi. Por isso, agradeço, mesmo que já esteja atrasada no agradecimento, a esse “ser desconhecido”, que, com uns simples, rústicos, mas, no fundo, majestosos malmequeres amarelos, contribuiu para que os buracos que começavam a grassar pela rua fossem, pelos menos alguns, tapadinhos.
Agora, a outra crónica, que também se pode cruzar com o espírito “epopeico” do “ser desconhecido”.
Todos os dias, quando contorno uma determinada rotunda, evidenciam-se ao meu olhar umas fogosas ervas, que não sei nomear, mas que me lembram as vassouras que a minha avó Augusta, de quem herdei o nome, e que teria hoje 107 anos, se fosse viva, fazia e usava para varrer a casa, o quintal e a rua. Não me lembro nunca de lhe ver outro tipo de vassoura, mesmo que a modernidade já lhe permitisse ter acesso a um objeto que a impediria de andar dobradinha sobre si própria. Talvez tivessem sido esses gestos repetitivos e essa postura que a fizeram ser sempre esguia, magrinha e elegante, como hoje eu gostaria de ser. Ou então talvez tivessem sido as dificuldades da vida, de quem trabalhava no campo, dependente de todas as intempéries e surpresas e tinha de alimentar seis filhos, a maioria das vezes sem condições para isso. Imagino a sua aflição e isso perturba-me, muitas vezes, mesmo que os tempo tenham mudado.
Mas, a lembrança da minha avó é permanente. Por isso, quando vejo aquelas ervas, altas, pomposas, convidando-nos para as cortarmos e juntarmos os caules, bem apertadinhos com uns baracitos que os rodeariam e terminariam num ou dois nós, e daí nasceriam umas vassouras, não consigo deixar de pensar que, se a minha avó fosse viva e estivesse por aqui, nesta terra a que ela nunca veio, agarraria numa foice e cortaria aquelas ervas todas e faria umas boas vassouras, para ela, para mim e para eu oferecer a quem quisesse. Aliás, essa atitude ajudaria a resolver muitas das exigências que parece que se fazem hoje, mas não a todos nem para todos, que é a limpeza de terrenos e bermas das estradas.
O junho dos santos populares foi fecundo nas condições que fizeram aquelas ervas punjantes. Que belas vassouras elas dariam! Era preciso que a avó Augusta aqui estivesse para, com a sua foice, as cortar.
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
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