O mundo a seus pés
"De cigarro na mão, tão descontraído como se estivesse à porta do café ou à espera de transporte, este homem faz nascer um estádio."
Não faço ideia se esta fotografia, que quase enche a capa do último JT, foi feita com a intenção de se tornar no que é: um extraordinário objecto fotográfico. Se não foi, torna-se assim um daqueles acasos que nos aparecem como se possuíssem a sua própria racionalidade.
Eu já vi esta fotografia, embora como pintura, tendo outras personagens: Infante D. Henrique contemplando o infinito oceano, Marquês do Pombal diante Lisboa, Napoleão Bonaparte sobre o campo de batalha. Imagens em que o olhar de um herói diante da paisagem reflecte a dimensão do seu poder. Neste caso o impacto é ainda maior, não só pela completa descontinuidade nas escalas, fazendo Fernando Cunha subjugar a paisagem como Gulliver em Lilliput mas também pela separação entre os dois níveis de realidade, mostrando-o como uma espécie de Artífice platónico de cuja inteligência depende a existência das coisas materiais.
Mas há ainda um pormenor (apoiando-me em Roland Barthes chamar-lhe-ei o punctum desta imagem) que não pode ser desprezado: o cigarro na mão. Quando as figuras que referi anteriormente foram pintadas, a ideia seria sugerir, graças a uma engenhosa retórica visual, uma espécie de aura sobrenatural de alguém que, sendo humano, estaria para lá da humanidade. Ora, este cigarro, se por um lado, humaniza a personagem, tornando-o um de nós, retirando-lhe, desse modo, a aura de pureza e de super-homem associada aos grandes estadistas que alimentam uma relação paternalista com os seus povos, ao criar esse efeito íntimo enquanto olha para a obra que vai brotando dos seus olhos e dos seus pés, torna-o ainda mais eloquente. Porquê?
Porque, de cigarro na mão, tão descontraído como se estivesse à porta do café ou à espera de transporte, este homem faz nascer um estádio. Uma relação natural e não épica, ao contrário do que sucede com a imagem dos ditadores ou dos heróis mistificados. Tal como um deus, seja pagão ou o judaico-cristão, a obra nasce naturalmente, sem esforço, enquanto fuma um dos vulgaríssimos cigarros que fumará ao longo do dia.
A sua solidão, uma solidão quase romântica (reforçada pelo cigarro), no limite direito da imagem, e que faz dele uma mistura de cowboy da Marlboro e de Citizen Kane, transforma ainda mais esta imagem numa emanação directa da sua vontade ou da sua imaginação criadora: tal como na Criação do Mundo, olhamos para a direita e vemos o criador, olhamos para a esquerda e vemos a criatura. Hegel, um filósofo alemão do século XIX e do qual já pouco se fala, dizia que Cristo reunia numa só figura o transcendente e o imanente. Esta imagem consegue o mesmo efeito. Pela escala, pela pose, pelo ar contemplativo, cria-se a sugestão de estarmos perante alguém que não é um de nós. Mas, com um cigarro na mão, vemos um homem que foi ali com o espírito de “Vou ali e já venho” e que olha para uma grande obra como se esta fosse exalada naturalmente pela sua própria respiração enquanto deita o fumo pela boca e pelo nariz, pouco antes de esmagar o cigarro com o pé e se voltar para ir então à sua vida.
O mundo a seus pés
De cigarro na mão, tão descontraído como se estivesse à porta do café ou à espera de transporte, este homem faz nascer um estádio.
Não faço ideia se esta fotografia, que quase enche a capa do último JT, foi feita com a intenção de se tornar no que é: um extraordinário objecto fotográfico. Se não foi, torna-se assim um daqueles acasos que nos aparecem como se possuíssem a sua própria racionalidade.
Eu já vi esta fotografia, embora como pintura, tendo outras personagens: Infante D. Henrique contemplando o infinito oceano, Marquês do Pombal diante Lisboa, Napoleão Bonaparte sobre o campo de batalha. Imagens em que o olhar de um herói diante da paisagem reflecte a dimensão do seu poder. Neste caso o impacto é ainda maior, não só pela completa descontinuidade nas escalas, fazendo Fernando Cunha subjugar a paisagem como Gulliver em Lilliput mas também pela separação entre os dois níveis de realidade, mostrando-o como uma espécie de Artífice platónico de cuja inteligência depende a existência das coisas materiais.
Mas há ainda um pormenor (apoiando-me em Roland Barthes chamar-lhe-ei o punctum desta imagem) que não pode ser desprezado: o cigarro na mão. Quando as figuras que referi anteriormente foram pintadas, a ideia seria sugerir, graças a uma engenhosa retórica visual, uma espécie de aura sobrenatural de alguém que, sendo humano, estaria para lá da humanidade. Ora, este cigarro, se por um lado, humaniza a personagem, tornando-o um de nós, retirando-lhe, desse modo, a aura de pureza e de super-homem associada aos grandes estadistas que alimentam uma relação paternalista com os seus povos, ao criar esse efeito íntimo enquanto olha para a obra que vai brotando dos seus olhos e dos seus pés, torna-o ainda mais eloquente. Porquê?
Porque, de cigarro na mão, tão descontraído como se estivesse à porta do café ou à espera de transporte, este homem faz nascer um estádio. Uma relação natural e não épica, ao contrário do que sucede com a imagem dos ditadores ou dos heróis mistificados. Tal como um deus, seja pagão ou o judaico-cristão, a obra nasce naturalmente, sem esforço, enquanto fuma um dos vulgaríssimos cigarros que fumará ao longo do dia.
A sua solidão, uma solidão quase romântica (reforçada pelo cigarro), no limite direito da imagem, e que faz dele uma mistura de cowboy da Marlboro e de Citizen Kane, transforma ainda mais esta imagem numa emanação directa da sua vontade ou da sua imaginação criadora: tal como na Criação do Mundo, olhamos para a direita e vemos o criador, olhamos para a esquerda e vemos a criatura. Hegel, um filósofo alemão do século XIX e do qual já pouco se fala, dizia que Cristo reunia numa só figura o transcendente e o imanente. Esta imagem consegue o mesmo efeito. Pela escala, pela pose, pelo ar contemplativo, cria-se a sugestão de estarmos perante alguém que não é um de nós. Mas, com um cigarro na mão, vemos um homem que foi ali com o espírito de “Vou ali e já venho” e que olha para uma grande obra como se esta fosse exalada naturalmente pela sua própria respiração enquanto deita o fumo pela boca e pelo nariz, pouco antes de esmagar o cigarro com o pé e se voltar para ir então à sua vida.
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![]() Se se observar o comportamento dos portugueses perante a pandemia, talvez seja possível ter um vislumbre daquilo que somos e de como gostamos de ser governados. Obviamente que não nos comportamos todas da mesma forma e não gostamos todos de ser governados da mesma maneira. |
![]() O herói nacional, melhor jogador de futebol do mundo de sempre, segundo dizem, foi protagonista numa daquelas histórias que são matéria-prima para solidificar lendas. Nessa história, sublinhando as origens humildes, o estratosférico conquista mais um laço com o Zé comum. |
![]() Apesar da limitação de vacinas nesta fase, o país tem vindo a ser confrontado com variados episódios de vacinação fora do que está priorizado. Há sempre alguém que se julga acima das normas ou que faz as suas próprias normas e ultrapassa assim os que estão na fila, ou então por via de terceiros chegam primeiro à seringa. |
![]() Na falta de acções presenciais, multiplicaram-se, nos últimos meses, as iniciativas on-line sobre os mais diversos assuntos. Num destes eventos em que participei, sensibilizou-me, particularmente, o testemunho de um ex-ministro social-democrata que, quando questionado sobre um eventual regresso à vida política mais activa, reconheceu que não pretende fazê-lo porque, e nas suas palavras, os quatro anos em que foi ministro mudaram-no, levando amigos e familiares mais próximos a dizerem-lhe que, nessa altura, ele não era “o mesmo Nuno”. |
![]() 1. O PSD de Torres Novas é uma anedota. Ao mesmo tempo que digo isto, ouço já ao fundo vozes a erguerem-se contra esta forma crua e dura de arrancar com este texto. Imagino até as conclusões de quem tem facilidade de falar sem saber: é do Bloco, dizem uns, comunista desde sempre, atiram outros, indo ainda mais longe, lembrando que dirige aquele pasquim comunista, conforme aprenderam com o ex-presidente socialista. |
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![]() Ouço os sinais ao longe. Um pranto gritado bem alto, do alto dos sinos da igreja, por alguém que partiu. É já raro ouvir-se. Por norma, pelo menos na nossa cidade, ecoam apenas pelos que muito deram de si à causa religiosa. |
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Hill Street Blues - carlos paiva |
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» Inês Vidal
PSD: a morte há muito anunciada - inês vidal |
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» Jorge Carreira Maia
O estranho caso das vacinas - jorge carreira maia |
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» Hélder Dias
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