BENDITOS OS PEIXES DO AZUL ( há 30 anos o Zeca emalou a trouxa e zarpou)
"Há mais de 40 anos, como até há vinte, estava longe de se imaginar a importância e a dimensão do legado musical e poético de José Afonso"
Pelos 14 anos, quando me meti nas militâncias revolucionárias logo a seguir ao dia inicial, mais que as ideologias e as cartilhas, vejo eu agora, havia uma espécie de programa poético que em fundo embalava gestos e ousadias, esperanças e coragens: pelas praias do mar nos vamos à procura da manhã clara. Eram palavras e música, uma mão cheia de músicas e poemas que me impressionavam tanto como a claridade daqueles dias, uma claridade feita de futuro enquanto se acreditou nele, pois claro.
Mas era o Zeca sempre em fundo, a pontuar os momentos de alegria e celebração, da vida e de como ele a via e no-la fazia sentir, mais do que tudo o resto, vejo agora. Por isso, um pouco mais tarde, quando surgiu a etiqueta “músico de intervenção” colada ao Zeca, aquilo fazia-me uma impressão danada, embora na altura não soubesse definir esse sentimento: intuía que a designação, mesmo quando não pejorativa, apequenava e limitava a dimensão do Zeca, cuja obra (o Zeca nunca permitiria que falássemos assim) me parecia larga, bela, sublime, inteira, ímpar.
Também ainda não se falava de “música do mundo” e uns anitos mais à frente, já mais ou menos visitador atento de outras gentes de vulto, de Cohen a Dylan, a norte, mais a sul dos Parra, aos outros grandes nomes da música latino-americana, de autor ou de inspiração tradicional, passando pelo genial mais que genial Chico Buarque, por um conjunto de meia dúzia de cantautores espanhóis, por Brel, pelas lendas da canção francesa, enfim, eu via-me a achar, baixinho, sem dizer a ninguém, que o Zeca era dessa dimensão, era um músico do mundo, que a justiça deveria colocar junto a essa gente de uma linhagem universal, que o Zeca ombreava claramente com esses todos e, pensava eu também, era maior que muitos deles e que o mundo só não via isso porque o Zeca cantava em português e era de um país chamado Portugal.
Posso explicar por que razão, acho eu, o José Afonso é o maior músico da segunda metade do século XX português e um dos maiores vultos da nossa cultura do mesmo período. Subsistem, hoje, dois nomes cuja música continua a ouvir-se, porque foi maior que eles e que continuam a inspirar as novas gerações: Amália e José Afonso. Mas Amália é uma voz e é apenas isso, uma inspiração, o que já é muito, a que se junta a sua contribuição para tornar o fado uma música maior. José Afonso deixou uma obra imensa que é também inspiração, sim, mas é matéria-prima sempre pronta para mais uma reinvenção, é argamassa e tijolo e pedra sempre prontos para ousar diferentes construções musicais, opções estéticas, fonte inesgotável de novos e inesperados impulsos criativos.
Basta olharmos para a geração mais recente da música portuguesa, onde tudo se funde (géneros, técnicas, influências, roupagens instrumentais e poéticas). De onde surge essa fonte, essa água fresca e límpida que tonifica uma certa identidade e que inspira Ana Cláudia ou Tomás Wallenstein, Capicua ou Marfox? Há, claro, Sétima Legião ou Madredeus, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, «mas apenas um nome os reúne a todos, José Afonso – e até DJ Marfox, que não cresceu a ouvi-lo, já o inclui agora nas suas sessões», escrevia-se num jornal, em que afiançava Éme (João Marcelo): «70% do que ouço é Zeca. Os outros 30%, divido-os por artistas americanos. Ouço o Variações, gosto muito de algumas coisas do Zé Mário, mas o que me move é mesmo o Zeca».
Ora, desde o final da década de 80, timidamente, e em força a partir da seguinte, grupos da área pop-rock e intérpretes de diversas tendências e géneros (incluindo o punk rock ou o novo fado) revisitaram, tocaram e gravaram dezenas de versões de temas de José Afonso, finalmente erguido à sua estatura de figura maior da nova música portuguesa, considere-se como se considere o âmbito e as fronteiras desse território.
Afinal, quando em 1972, nos estúdios do castelo de Herouville, próximo de Paris, onde gravavam os Pink Floyd, foi eternizado o melhor álbum de sempre da música portuguesa, não estávamos diante de uma ruptura e de um ponto de partida: “Cantigas do Maio”, de José Afonso era, pelo contrário, um ponto de chegada, o resultado de um processo de maturação iniciado há mais de uma década em Coimbra e a partir de um género musical limitado, circunscrito em termos geográficos, culturais e musicais.
José Afonso logrou atingir a síntese perfeita de um conjunto de referências musicais, poéticas, formais e instrumentais cuja conceptualização, dotada de uma enorme modernidade, continha em si um núcleo interior bastante próximo daquilo que muitos músicos e criadores musicais, antes e depois dele, almejaram: uma música que revelasse indiscutivelmente uma identidade portuguesa. No caso de José Afonso uma música dotada de uma inesperada frescura lírica, límpida nos processos instrumentais, atmosferas sonoras luminosas e surpreendentes, tudo isto em redor de uma voz também ela verdadeiramente única.
Há mais de 40 anos, como até há vinte, estava longe de se imaginar a importância e a dimensão do legado musical e poético de José Afonso e o modo como a sua obra iria inspirar as novas gerações e invadir campos impensáveis, como o próprio rock, com as revisitações de temas seus, dotados de elasticidade rítmica e potencialidades melódicas capazes de mobilizar as motivações criativas de tão loucas e desvairadas gentes.
Enorme como poeta (raramente se fala na dimensão de Zeca enquanto poeta), músico genial, uma voz única (sim, única, à dimensão da de Amália), eis o meu José Afonso. São raros os dias em que não assobio uma cantiga do Zeca, não trauteio uma canção pela enésima vez, que não me venham à lembrança versos do Zeca onde a vida espreita e convoca as palavras que se nos colaram à pele e à alma. Raros são os dias. Por isso o Zeca é o companheiro de uma vida, o companheiro dos dias, o mais fiel e persistente companheiro: fecho os olhos e vêm-me à lembrança dezenas de músicas, centenas de frases poéticas, imagens, sons, pequenos grandes pormenores de belas criações, geniais criações, e eis-nos perante a pura alegria da criação.
Bendito seja o pão, bendita seja a dor. Benditas as portas do amor. Ouvem-se palavras assim e é tudo.
(23 de Fevereiro de 2017, 30 anos depois de o Zeca se ter feito eterno andarilho)
BENDITOS OS PEIXES DO AZUL ( há 30 anos o Zeca emalou a trouxa e zarpou)
Há mais de 40 anos, como até há vinte, estava longe de se imaginar a importância e a dimensão do legado musical e poético de José Afonso
Pelos 14 anos, quando me meti nas militâncias revolucionárias logo a seguir ao dia inicial, mais que as ideologias e as cartilhas, vejo eu agora, havia uma espécie de programa poético que em fundo embalava gestos e ousadias, esperanças e coragens: pelas praias do mar nos vamos à procura da manhã clara. Eram palavras e música, uma mão cheia de músicas e poemas que me impressionavam tanto como a claridade daqueles dias, uma claridade feita de futuro enquanto se acreditou nele, pois claro.
Mas era o Zeca sempre em fundo, a pontuar os momentos de alegria e celebração, da vida e de como ele a via e no-la fazia sentir, mais do que tudo o resto, vejo agora. Por isso, um pouco mais tarde, quando surgiu a etiqueta “músico de intervenção” colada ao Zeca, aquilo fazia-me uma impressão danada, embora na altura não soubesse definir esse sentimento: intuía que a designação, mesmo quando não pejorativa, apequenava e limitava a dimensão do Zeca, cuja obra (o Zeca nunca permitiria que falássemos assim) me parecia larga, bela, sublime, inteira, ímpar.
Também ainda não se falava de “música do mundo” e uns anitos mais à frente, já mais ou menos visitador atento de outras gentes de vulto, de Cohen a Dylan, a norte, mais a sul dos Parra, aos outros grandes nomes da música latino-americana, de autor ou de inspiração tradicional, passando pelo genial mais que genial Chico Buarque, por um conjunto de meia dúzia de cantautores espanhóis, por Brel, pelas lendas da canção francesa, enfim, eu via-me a achar, baixinho, sem dizer a ninguém, que o Zeca era dessa dimensão, era um músico do mundo, que a justiça deveria colocar junto a essa gente de uma linhagem universal, que o Zeca ombreava claramente com esses todos e, pensava eu também, era maior que muitos deles e que o mundo só não via isso porque o Zeca cantava em português e era de um país chamado Portugal.
Posso explicar por que razão, acho eu, o José Afonso é o maior músico da segunda metade do século XX português e um dos maiores vultos da nossa cultura do mesmo período. Subsistem, hoje, dois nomes cuja música continua a ouvir-se, porque foi maior que eles e que continuam a inspirar as novas gerações: Amália e José Afonso. Mas Amália é uma voz e é apenas isso, uma inspiração, o que já é muito, a que se junta a sua contribuição para tornar o fado uma música maior. José Afonso deixou uma obra imensa que é também inspiração, sim, mas é matéria-prima sempre pronta para mais uma reinvenção, é argamassa e tijolo e pedra sempre prontos para ousar diferentes construções musicais, opções estéticas, fonte inesgotável de novos e inesperados impulsos criativos.
Basta olharmos para a geração mais recente da música portuguesa, onde tudo se funde (géneros, técnicas, influências, roupagens instrumentais e poéticas). De onde surge essa fonte, essa água fresca e límpida que tonifica uma certa identidade e que inspira Ana Cláudia ou Tomás Wallenstein, Capicua ou Marfox? Há, claro, Sétima Legião ou Madredeus, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, «mas apenas um nome os reúne a todos, José Afonso – e até DJ Marfox, que não cresceu a ouvi-lo, já o inclui agora nas suas sessões», escrevia-se num jornal, em que afiançava Éme (João Marcelo): «70% do que ouço é Zeca. Os outros 30%, divido-os por artistas americanos. Ouço o Variações, gosto muito de algumas coisas do Zé Mário, mas o que me move é mesmo o Zeca».
Ora, desde o final da década de 80, timidamente, e em força a partir da seguinte, grupos da área pop-rock e intérpretes de diversas tendências e géneros (incluindo o punk rock ou o novo fado) revisitaram, tocaram e gravaram dezenas de versões de temas de José Afonso, finalmente erguido à sua estatura de figura maior da nova música portuguesa, considere-se como se considere o âmbito e as fronteiras desse território.
Afinal, quando em 1972, nos estúdios do castelo de Herouville, próximo de Paris, onde gravavam os Pink Floyd, foi eternizado o melhor álbum de sempre da música portuguesa, não estávamos diante de uma ruptura e de um ponto de partida: “Cantigas do Maio”, de José Afonso era, pelo contrário, um ponto de chegada, o resultado de um processo de maturação iniciado há mais de uma década em Coimbra e a partir de um género musical limitado, circunscrito em termos geográficos, culturais e musicais.
José Afonso logrou atingir a síntese perfeita de um conjunto de referências musicais, poéticas, formais e instrumentais cuja conceptualização, dotada de uma enorme modernidade, continha em si um núcleo interior bastante próximo daquilo que muitos músicos e criadores musicais, antes e depois dele, almejaram: uma música que revelasse indiscutivelmente uma identidade portuguesa. No caso de José Afonso uma música dotada de uma inesperada frescura lírica, límpida nos processos instrumentais, atmosferas sonoras luminosas e surpreendentes, tudo isto em redor de uma voz também ela verdadeiramente única.
Há mais de 40 anos, como até há vinte, estava longe de se imaginar a importância e a dimensão do legado musical e poético de José Afonso e o modo como a sua obra iria inspirar as novas gerações e invadir campos impensáveis, como o próprio rock, com as revisitações de temas seus, dotados de elasticidade rítmica e potencialidades melódicas capazes de mobilizar as motivações criativas de tão loucas e desvairadas gentes.
Enorme como poeta (raramente se fala na dimensão de Zeca enquanto poeta), músico genial, uma voz única (sim, única, à dimensão da de Amália), eis o meu José Afonso. São raros os dias em que não assobio uma cantiga do Zeca, não trauteio uma canção pela enésima vez, que não me venham à lembrança versos do Zeca onde a vida espreita e convoca as palavras que se nos colaram à pele e à alma. Raros são os dias. Por isso o Zeca é o companheiro de uma vida, o companheiro dos dias, o mais fiel e persistente companheiro: fecho os olhos e vêm-me à lembrança dezenas de músicas, centenas de frases poéticas, imagens, sons, pequenos grandes pormenores de belas criações, geniais criações, e eis-nos perante a pura alegria da criação.
Bendito seja o pão, bendita seja a dor. Benditas as portas do amor. Ouvem-se palavras assim e é tudo.
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