QUE PARECENDO SER PLURAL E DIVERSO - margarida trindade
"A defesa da mutilação intelectual é só o primeiro passo para essa vitória da barbárie. "
Em cima da mesa da cozinha, em casa dos meus avós, havia sempre um último número do Jornal de Abrantes. A lembrança é de umas folhas muito brancas e rígidas, de um jornal que à época já me parecia antigo, e era comparado com o Expresso ou com A Capital — outros jornais que me habituei a ver também em cima de outra mesa, na sala de estar da casa dos meus pais.
O meu avô materno era, apesar de tudo, um homem esclarecido. Um homem do campo, trabalhador rural, republicano que lia sem falhar o jornal local que trazia para cima da mesa da cozinha, e onde permanecia os dias suficientes para que fosse absorvido devagar e durasse até que um novo número o pudesse substituir. Aprendeu solfejo e tocava trompete na banda filarmónica. Um homem do seu tempo, num Portugal pobre e descalço.
Outros tempos, em que os dias começavam de madrugada e davam para ir e vir para os campos, para a horta, para a mata, para as refeições de couves-com-feijão e pão-de-milho, se o havia, e onde não falhava um copito ou dois de vinho tinto.
O Domingo servia para ir à missa, fazer a barba, e ler devagar o jornal, poupando cada artigo, cada coluna, a ver se as páginas ainda por ler duravam até ao final do mês, como de resto os tostões ou o folhetim diário na rádio que ia esticando os dias. Os mais frios junto ao lume, os mais quentes ao relento, debaixo do escuro do céu.
Dos cinco filhos dos meus avós maternos, dos outros não sei, mas a mais velha foi para a escola já ensinada a ler. Precisamente, letra a letra, no Jornal de Abrantes, recurso só, mas certo, para a vontade de saber mais, de estar a par do mundo.
Quis então o meu avô que a filha, que aprendeu cedo a juntar as letras, fosse já apetrechada com esta ferramenta, ao tempo ainda pouco consagrada a mulheres, para a escola primária, a leitura.
Um avanço, aliás, que lhe valeu para a vida toda. Sem com certeza se dar conta disso, o meu avô fez da filha uma mulher que mais do que juntar letras foi, e é, interventiva, esclarecida, informada, activa na política e na sociedade, à sua maneira. Resultou, no caso, numa mulher de vanguarda, que sempre pensou pela sua cabeça. Ofereceu-me os primeiros livros juvenis sobre sexualidade, as primeiras memórias do Doutor Jivago ou de As Vinhas da Ira. Um perigo, portanto, que encaixaria num qualquer index onomástico que por conta de certas opiniões deveria vigorar no ensino público para afastar da escola o livre pensamento ou a emancipação intelectual.
Ouvi dizer que há para aí quem defenda mutilações físicas. Não admira. A defesa da mutilação intelectual é só o primeiro passo para essa vitória da barbárie.
Nas memórias que guardo do meu avô, tenho grata a lembrança daquele jornal que ali vivia em sua casa. Quantas vezes, em meios menos favorecidos como era o da maioria dos portugueses que morava no interior de Portugal em meados do século passado, não foi a imprensa local e regional o veículo do livre pensamento que insistiu em sobreviver, apesar da pobreza continuar a teimar.
Neste tempo em que a velocidade dos dias nos suprimiu a capacidade de escutar mais do que uma massa de pensamento único, que parecendo ser plural e diverso não o é (nem dá muito jeito que seja), importa continuar a apoiar e a ler a imprensa local e regional, quantas vezes o raro balão de oxigénio e a única consciência de alerta, nas margens de um rio em cuja corrente, por inércia ou comodismo, nos vamos deixando arrastar e submergir.
QUE PARECENDO SER PLURAL E DIVERSO - margarida trindade
A defesa da mutilação intelectual é só o primeiro passo para essa vitória da barbárie.
Em cima da mesa da cozinha, em casa dos meus avós, havia sempre um último número do Jornal de Abrantes. A lembrança é de umas folhas muito brancas e rígidas, de um jornal que à época já me parecia antigo, e era comparado com o Expresso ou com A Capital — outros jornais que me habituei a ver também em cima de outra mesa, na sala de estar da casa dos meus pais.
O meu avô materno era, apesar de tudo, um homem esclarecido. Um homem do campo, trabalhador rural, republicano que lia sem falhar o jornal local que trazia para cima da mesa da cozinha, e onde permanecia os dias suficientes para que fosse absorvido devagar e durasse até que um novo número o pudesse substituir. Aprendeu solfejo e tocava trompete na banda filarmónica. Um homem do seu tempo, num Portugal pobre e descalço.
Outros tempos, em que os dias começavam de madrugada e davam para ir e vir para os campos, para a horta, para a mata, para as refeições de couves-com-feijão e pão-de-milho, se o havia, e onde não falhava um copito ou dois de vinho tinto.
O Domingo servia para ir à missa, fazer a barba, e ler devagar o jornal, poupando cada artigo, cada coluna, a ver se as páginas ainda por ler duravam até ao final do mês, como de resto os tostões ou o folhetim diário na rádio que ia esticando os dias. Os mais frios junto ao lume, os mais quentes ao relento, debaixo do escuro do céu.
Dos cinco filhos dos meus avós maternos, dos outros não sei, mas a mais velha foi para a escola já ensinada a ler. Precisamente, letra a letra, no Jornal de Abrantes, recurso só, mas certo, para a vontade de saber mais, de estar a par do mundo.
Quis então o meu avô que a filha, que aprendeu cedo a juntar as letras, fosse já apetrechada com esta ferramenta, ao tempo ainda pouco consagrada a mulheres, para a escola primária, a leitura.
Um avanço, aliás, que lhe valeu para a vida toda. Sem com certeza se dar conta disso, o meu avô fez da filha uma mulher que mais do que juntar letras foi, e é, interventiva, esclarecida, informada, activa na política e na sociedade, à sua maneira. Resultou, no caso, numa mulher de vanguarda, que sempre pensou pela sua cabeça. Ofereceu-me os primeiros livros juvenis sobre sexualidade, as primeiras memórias do Doutor Jivago ou de As Vinhas da Ira. Um perigo, portanto, que encaixaria num qualquer index onomástico que por conta de certas opiniões deveria vigorar no ensino público para afastar da escola o livre pensamento ou a emancipação intelectual.
Ouvi dizer que há para aí quem defenda mutilações físicas. Não admira. A defesa da mutilação intelectual é só o primeiro passo para essa vitória da barbárie.
Nas memórias que guardo do meu avô, tenho grata a lembrança daquele jornal que ali vivia em sua casa. Quantas vezes, em meios menos favorecidos como era o da maioria dos portugueses que morava no interior de Portugal em meados do século passado, não foi a imprensa local e regional o veículo do livre pensamento que insistiu em sobreviver, apesar da pobreza continuar a teimar.
Neste tempo em que a velocidade dos dias nos suprimiu a capacidade de escutar mais do que uma massa de pensamento único, que parecendo ser plural e diverso não o é (nem dá muito jeito que seja), importa continuar a apoiar e a ler a imprensa local e regional, quantas vezes o raro balão de oxigénio e a única consciência de alerta, nas margens de um rio em cuja corrente, por inércia ou comodismo, nos vamos deixando arrastar e submergir.
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É plausível afirmar que o corpo político, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga da pandemia, não tem estado feliz na actual situação. Refiro-me ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos dirigentes das várias oposições. |
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- Ó querida, sou tão bom. Mas tão bom que até vais trepar pelas paredes. - Ai sim? E como é que vais conseguir tal proeza? - Ora… Isso agora é cá comigo. Eu é que sei. |
![]() Sinto que estou sempre a dizer o mesmo, que os meus textos são repetições cíclicas dos mesmos assuntos e que estes são, só por si, repetições cíclicas e enfadonhas deles próprios. |
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