A Rosa do Nome - josé ricardo costa
"Há terras cujo nome é bonito, enaltecendo quem lá vive, como Vila do Paço, Ribeira Branca, Bom Amor, Lapas, Cardais, Vale da Serra "
Faço uma bela caminhada matinal que me leva a passar pela Caveira, Bonflorido e Vale de Carvão e sou levado a pensar em três pessoas, uma de cada aldeia, escrevendo as suas moradas para uma encomenda. O que pensarão lá longe destes nomes? Ao contrário das sensações que nos obrigam a ver uma cadeira se estamos diante de uma cadeira ou a cheirar frango assado se for frango assado, ao contrário da razão que nos obriga a dizer que o dobro de dois é quatro e não cinco, a imaginação, graças às suas livres jogadas, tem a capacidade de prodigalizar o que não existe.
O que lembra Caveira? Pois, uma caveira é uma caveira é uma caveira. Em suma, uma caveira. Se quisermos sublimar um bocadinho, podemos ainda pensar num título de um conto de Edgar Allan Poe ou um daqueles filmes de terror dos anos 70 em que se vê bem que o sangue é molho de tomate. Uma coisa é certa: jamais abonará a favor de quem lá vive. Imagina-se uma população esquálida, desvitalizada, noctívagas almas penadas num romântico locus horrendus. Já Bonflorido, ah, Bonflorido, transpira lirismo por todos os poros. Podia ser tirada de um poema de António Ramos Rosa ou Eugénio de Andrade, um jovial pedaço de Bernardim Ribeiro. Na cabeça da pessoa que envia a encomenda lê «Bonflorido» começa logo a soar “Feno de Portugal, aroma da natureza” ou a voz de Meredith Monk na Memory Song "Trees… trees… birds… birds… coffee, coffee, coffee". Pois, mas com Vale Carvão voltamos a regredir. Vale de Carvão poderia ser uma versão portuguesa de uma aldeia inglesa algures entre Manchester e Liverpool, casas com telhados pretos da fuligem e cuja população caminha pelas ruas a tossir e a lamentar How green was my valley, neste caso, na língua de Camões.
Eis, pois, a indomável imaginação a fazer o seu trabalho. Mas ao passar pelas três terras, encostadinhas umas às outras, vejo-as como se fossem uma só. A nossa percepção do mundo é bem diferente a pé ou de carro e mais ainda do que simples nomes. Percebi que o ar puro que respirava era o mesmo, como era a mesma a luz do Sol ou o encantador chilrear dos passarinhos, as casas, as ruas, enfim, três terras cujos nomes as separam com a mesma distância ontológica de um Dr Jekyll e de um Mr Hyde, e que se tornam tão iguais na sua natureza, como na Divina Trindade.
Há anos tive uma aluna chamada Cátia Vanessa e que sofria imenso com o seu desgraçado destino. Eu dizia, vá, é só um nome, que importância tem um nome, mas ela tinha toda a razão. É muito mais do que um nome, é todo um programa. Ela era inteligente, boa aluna, bonita, tinha bom gosto, mas será toda a vida perseguida pelo nome. Dói um dente e a pessoa sabe de uma dentista chamada Cátia Vanessa. Como pode uma pessoa sentir-se confiante ao abrir a boca para uma drª Cátia Vanessa? Precisa-se de um arquitecto para desenhar uma casa. Sisa, Souto de Moura, Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça? Sim, tudo nomes bem perfumados. Até Taveira, enfim. Agora, alguém pediria a uma Cátia Vanessa, ainda que com um apelido sonante, para desenhar uma casa? Viriam logo à cabeça as casas do engº Sócrates no distrito da Guarda, que até tem nome de filósofo com pedigree mas seria a última pessoa a quem quase (pobres quase!) 10 milhões de portugueses comprariam um carro em segunda mão e mesmo em primeira sabe Deus.
No caso das terras também não há volta a dar. As pessoas não escolhem as terras pelo nome. Porém, têm de se mentalizar que tal como o carro em que andam também o nome da terra pode ser importante para o seu estatuto social, isto, porque a imaginação não perdoa. Já houve quem pensasse que Torres Novas fosse uma cidade nova e toda moderna por causa do seu nome. Não, o Entroncamento é que é, Torres Novas é antiga com cortes e tudo e famílias com nome sonante. É como confundir Chambord com a Trump Tower.
Se querem Pé de Cão já sabem que não se livram de ficar associados a um chefe índio apesar de em Portugal só os ter havido na Meia Praia. Terras Pretas faz lembrar uma aldeia da Beira Alta dos anos 60, com velhas de cabeça coberta a espreitar pelo postigo numa casa por cima do estábulo. A aliteração de Carreiro da Areia é horrível e a semântica não é melhor, mais parecendo um daqueles caminhos que vão dar a uma obra. Pafarrão poderia ser uma personagem de Rabelais, Molière ou de uma ópera de Rossini. Videla faz arrepiar, remetendo para uma ditadura militar sul-americana. E por falar em militar, Boquilobo sugere pessoas que vão mesmo enfiar-se na boca do lobo, terra onde, por isso, é perigoso nascer. Fungalvaz lembra constipações. Valhelhas parece uma mistura de velha com balhelhas. Rexaldia poderia ser palavra para som estridente. Gavata não existe no Houaiss mas bem poderia ser um buraco feito por uma galinha. Borreco até é fofinho mas tem ao mesmo tempo algo de cómico, retirando alguma gravitas social a quem lá mora. Rendufas podiam ser uns chinelos de quarto do século XVIII, elegância barroca sem dúvida, mas se pensarmos que naquele tempo as pessoas não tomavam banho ficamos conversados. Lamarosa tem rosa mas também tem lama. Assentiz parece uma noção matemática, até tem a sua graça, bem poderia ser uma das ilhas das Viagens de Gulliver, mas a sua pura racionalidade tira-lhe alguma vinculação comunitária. Enfim, Alcorriol é uma desgraça onomástica tão grande que nem merece comentários.
Mas há terras cujo nome é bonito, enaltecendo quem lá vive, como Vila do Paço, Ribeira Branca, Bom Amor, Lapas, Cardais, Vale da Serra, Casal dos Ramos (ao contrário de Casal do Cepo, um verdadeiro anátema para quem lá more), Carvalhal da Aroeira ou Chancelaria. Seja como for, nomes são nomes são nomes e, como diria um medieval, não passam de flatus vocis. Mas, como diria a minha aluna, não é bem assim. A imaginação humana quando ligada à perversão e ao cinismo é implacável. Por isso, pelo sim, pelo não, se quisesse comprar um terreno na zona do Vale Carvão ou Caveira, creio que o iria comprar uns metros mais à frente só para poder morar no Bonflorido.
A Rosa do Nome - josé ricardo costa
Há terras cujo nome é bonito, enaltecendo quem lá vive, como Vila do Paço, Ribeira Branca, Bom Amor, Lapas, Cardais, Vale da Serra
Faço uma bela caminhada matinal que me leva a passar pela Caveira, Bonflorido e Vale de Carvão e sou levado a pensar em três pessoas, uma de cada aldeia, escrevendo as suas moradas para uma encomenda. O que pensarão lá longe destes nomes? Ao contrário das sensações que nos obrigam a ver uma cadeira se estamos diante de uma cadeira ou a cheirar frango assado se for frango assado, ao contrário da razão que nos obriga a dizer que o dobro de dois é quatro e não cinco, a imaginação, graças às suas livres jogadas, tem a capacidade de prodigalizar o que não existe.
O que lembra Caveira? Pois, uma caveira é uma caveira é uma caveira. Em suma, uma caveira. Se quisermos sublimar um bocadinho, podemos ainda pensar num título de um conto de Edgar Allan Poe ou um daqueles filmes de terror dos anos 70 em que se vê bem que o sangue é molho de tomate. Uma coisa é certa: jamais abonará a favor de quem lá vive. Imagina-se uma população esquálida, desvitalizada, noctívagas almas penadas num romântico locus horrendus. Já Bonflorido, ah, Bonflorido, transpira lirismo por todos os poros. Podia ser tirada de um poema de António Ramos Rosa ou Eugénio de Andrade, um jovial pedaço de Bernardim Ribeiro. Na cabeça da pessoa que envia a encomenda lê «Bonflorido» começa logo a soar “Feno de Portugal, aroma da natureza” ou a voz de Meredith Monk na Memory Song "Trees… trees… birds… birds… coffee, coffee, coffee". Pois, mas com Vale Carvão voltamos a regredir. Vale de Carvão poderia ser uma versão portuguesa de uma aldeia inglesa algures entre Manchester e Liverpool, casas com telhados pretos da fuligem e cuja população caminha pelas ruas a tossir e a lamentar How green was my valley, neste caso, na língua de Camões.
Eis, pois, a indomável imaginação a fazer o seu trabalho. Mas ao passar pelas três terras, encostadinhas umas às outras, vejo-as como se fossem uma só. A nossa percepção do mundo é bem diferente a pé ou de carro e mais ainda do que simples nomes. Percebi que o ar puro que respirava era o mesmo, como era a mesma a luz do Sol ou o encantador chilrear dos passarinhos, as casas, as ruas, enfim, três terras cujos nomes as separam com a mesma distância ontológica de um Dr Jekyll e de um Mr Hyde, e que se tornam tão iguais na sua natureza, como na Divina Trindade.
Há anos tive uma aluna chamada Cátia Vanessa e que sofria imenso com o seu desgraçado destino. Eu dizia, vá, é só um nome, que importância tem um nome, mas ela tinha toda a razão. É muito mais do que um nome, é todo um programa. Ela era inteligente, boa aluna, bonita, tinha bom gosto, mas será toda a vida perseguida pelo nome. Dói um dente e a pessoa sabe de uma dentista chamada Cátia Vanessa. Como pode uma pessoa sentir-se confiante ao abrir a boca para uma drª Cátia Vanessa? Precisa-se de um arquitecto para desenhar uma casa. Sisa, Souto de Moura, Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça? Sim, tudo nomes bem perfumados. Até Taveira, enfim. Agora, alguém pediria a uma Cátia Vanessa, ainda que com um apelido sonante, para desenhar uma casa? Viriam logo à cabeça as casas do engº Sócrates no distrito da Guarda, que até tem nome de filósofo com pedigree mas seria a última pessoa a quem quase (pobres quase!) 10 milhões de portugueses comprariam um carro em segunda mão e mesmo em primeira sabe Deus.
No caso das terras também não há volta a dar. As pessoas não escolhem as terras pelo nome. Porém, têm de se mentalizar que tal como o carro em que andam também o nome da terra pode ser importante para o seu estatuto social, isto, porque a imaginação não perdoa. Já houve quem pensasse que Torres Novas fosse uma cidade nova e toda moderna por causa do seu nome. Não, o Entroncamento é que é, Torres Novas é antiga com cortes e tudo e famílias com nome sonante. É como confundir Chambord com a Trump Tower.
Se querem Pé de Cão já sabem que não se livram de ficar associados a um chefe índio apesar de em Portugal só os ter havido na Meia Praia. Terras Pretas faz lembrar uma aldeia da Beira Alta dos anos 60, com velhas de cabeça coberta a espreitar pelo postigo numa casa por cima do estábulo. A aliteração de Carreiro da Areia é horrível e a semântica não é melhor, mais parecendo um daqueles caminhos que vão dar a uma obra. Pafarrão poderia ser uma personagem de Rabelais, Molière ou de uma ópera de Rossini. Videla faz arrepiar, remetendo para uma ditadura militar sul-americana. E por falar em militar, Boquilobo sugere pessoas que vão mesmo enfiar-se na boca do lobo, terra onde, por isso, é perigoso nascer. Fungalvaz lembra constipações. Valhelhas parece uma mistura de velha com balhelhas. Rexaldia poderia ser palavra para som estridente. Gavata não existe no Houaiss mas bem poderia ser um buraco feito por uma galinha. Borreco até é fofinho mas tem ao mesmo tempo algo de cómico, retirando alguma gravitas social a quem lá mora. Rendufas podiam ser uns chinelos de quarto do século XVIII, elegância barroca sem dúvida, mas se pensarmos que naquele tempo as pessoas não tomavam banho ficamos conversados. Lamarosa tem rosa mas também tem lama. Assentiz parece uma noção matemática, até tem a sua graça, bem poderia ser uma das ilhas das Viagens de Gulliver, mas a sua pura racionalidade tira-lhe alguma vinculação comunitária. Enfim, Alcorriol é uma desgraça onomástica tão grande que nem merece comentários.
Mas há terras cujo nome é bonito, enaltecendo quem lá vive, como Vila do Paço, Ribeira Branca, Bom Amor, Lapas, Cardais, Vale da Serra, Casal dos Ramos (ao contrário de Casal do Cepo, um verdadeiro anátema para quem lá more), Carvalhal da Aroeira ou Chancelaria. Seja como for, nomes são nomes são nomes e, como diria um medieval, não passam de flatus vocis. Mas, como diria a minha aluna, não é bem assim. A imaginação humana quando ligada à perversão e ao cinismo é implacável. Por isso, pelo sim, pelo não, se quisesse comprar um terreno na zona do Vale Carvão ou Caveira, creio que o iria comprar uns metros mais à frente só para poder morar no Bonflorido.
![]() Apresentados os candidatos à presidência da Câmara de Torres Novas, a realizar nos finais de Setembro, ou na primeira quinzena de Outubro, restam pouco mais de três meses (dois de férias), para se conhecer ao que vêm, quem é quem, o que defendem, para o concelho, na sua interligação cidade/freguesias. |
![]() O nosso major-general é uma versão pós-moderna do Pangloss de Voltaire, atestando que, no designado “mundo livre”, estamos no melhor possível, prontos para a vitória e não pode ser de outro modo. |
![]() “Pobre é o discípulo que não excede o seu mestre” Leonardo da Vinci
Mais do que rumor, é já certo que a IA é capaz de usar linguagem ininteligível para os humanos com o objectivo de ser mais eficaz. |
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Em 2012, o psicólogo social Jonathan Haidt publicou a obra A Mente Justa: Porque as Pessoas Boas não se Entendem sobre Política e Religião. Esta obra é fundamental porque nos ajuda a compreender um dos dramas que assolam os países ocidentais, cujas democracias se estruturam, ainda hoje, pela dicotomia esquerda–direita. |
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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