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"O futebol pode ter sido uma espécie de bengala do regime fascista. Mas o que temos hoje é o próprio regime democrático a ser uma bengala do futebol"
Admito ser um bocadinho conservador, sobretudo naqueles dias em que acordo com uma certa vontade de lavar os dentes com pasta medicinal Couto e de ter um mordomo chamado Jeeves para me trazer o fato às riscas enquanto faz o resumo do Financial Times. Mas reaccionário não sou. Um reaccionário é alguém que vê a sua atitude consubstanciada no popular Ó Tempo Volta para Trás de António Mourão. Dizia o filósofo Anthony Quiton, um conservador de Oxford, que um reaccionário é um “revolucionário do avesso”, quer dizer, em vez de salivar por um futuro que ainda não existe, saliva por um passado que já não existe. Quer isto dizer que há tanta parvoíce em ser reacionário como em ser revolucionário pois se é para salivar, que se salive, por pouco saboroso que seja, pelo que se tem no prato em vez do que já foi comido ou do que nunca se virá a comer.
Daí, ao contrário daqueles taxistas rabugentos que imploram três salazares para pôr ordem na nação, eu não ter arrebatamentos nostálgicos em relação ao fascismo, até porque só vivi os seus últimos 13 anos, que para mim foram os primeiros, isto é, ainda sem sexo, droga e rock n’roll, o que implica tirar à vida duas partes importantes da sua piada, já que a do meio é dispensável. Mas também não sou ingrato para desprezar o que o nosso fascismo tinha de simpático. Uma das coisas boas eram os míticos três éfes: Fátima, futebol e fado. Serei insuspeito nesta matéria. De futebol continuo a gostar mas, por muito excelente que seja o caldo verde com chouriço, não troco um animado concerto de pós-punk por uma noite de fados à luz da vela em que está tudo com aquele ar de quem já está há 10 minutos a ver um filme de Manoel de Oliveira enquanto uma voz esganiçada desabafa umas mágoas. Depois, tirando alguns santuários gastronómicos, nada me faz ter vontade de ir a Fátima, nem de carro e muito menos a pé pois para isso já me bastam as voltas à avenida depois de jantar e não tem a subida do Pafarrão.
Mas isso não me impede de reconhecer durante o fascismo uma mais democrática, racional e justa distribuição da alienação popular. Eusébio era um ídolo mas acompanhado de Amália, Marceneiro, Hermínia Silva, Nossa Senhora, pastorinhos, santinhos e priores em geral, dividindo-se assim o mal pelas aldeias, tão caras à paroquialidade salazarista. Hoje, pelo contrário, já não existem aldeias de alienação pois o fado deixou de esganiçar as gargantas do povo que agora esganiça os dedos pelas redes sociais, e a religião já não é o que era, estando tudo concentrado na megametrópole do futebol. A brilhante aura de um Eusébio, de um Hilário, de um Rolando ou de um Jacinto João seria anulada pelos potentes e prepotentes holofotes de Bruno de Carvalho, mulher de Bruno de Carvalho, ex-mulher de Bruno de Carvalho, filha de Bruno de Carvalho, 3652 psiquiatras de Bruno de carvalho, Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa e suas mulheres, Francisco J. Marques, Nuno Saraiva, Pedro Guerra, Dias Ferreira, Dolores Aveiro e netos, Octávio Machado e seus clones, o bombeiro Marta, André Ventura, emails, escutas, fruta, apito dourado, túnel, esquemas, sistema, arbitragens, VAR, mão na bola ou bola na mão, estatutos, providências cautelares, assembleias gerais, conferências de imprensa em directo antes dos jogos, depois dos jogos e quando não há jogos ou só mesmo um solitário microfone em cima da mesa.
O futebol pode ter sido uma espécie de bengala do regime fascista. Mas o que temos hoje é o próprio regime democrático a ser uma bengala do futebol, a criatura tornada monstro que com as suas garras esganiça a democracia. De um futebol na era fascista passámos assim à era do futebol fascista: totalitário, despótico e concentracionário. Inconformado com este fado e esta nova e única religião, serei pois reacionário, preferindo honrar a memória de um tempo em que o futebol só luzia graças a jogadores, sua única e verdadeira casta, que apenas jogavam para nos darem alegrias e tristezas.
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O futebol pode ter sido uma espécie de bengala do regime fascista. Mas o que temos hoje é o próprio regime democrático a ser uma bengala do futebol
Admito ser um bocadinho conservador, sobretudo naqueles dias em que acordo com uma certa vontade de lavar os dentes com pasta medicinal Couto e de ter um mordomo chamado Jeeves para me trazer o fato às riscas enquanto faz o resumo do Financial Times. Mas reaccionário não sou. Um reaccionário é alguém que vê a sua atitude consubstanciada no popular Ó Tempo Volta para Trás de António Mourão. Dizia o filósofo Anthony Quiton, um conservador de Oxford, que um reaccionário é um “revolucionário do avesso”, quer dizer, em vez de salivar por um futuro que ainda não existe, saliva por um passado que já não existe. Quer isto dizer que há tanta parvoíce em ser reacionário como em ser revolucionário pois se é para salivar, que se salive, por pouco saboroso que seja, pelo que se tem no prato em vez do que já foi comido ou do que nunca se virá a comer.
Daí, ao contrário daqueles taxistas rabugentos que imploram três salazares para pôr ordem na nação, eu não ter arrebatamentos nostálgicos em relação ao fascismo, até porque só vivi os seus últimos 13 anos, que para mim foram os primeiros, isto é, ainda sem sexo, droga e rock n’roll, o que implica tirar à vida duas partes importantes da sua piada, já que a do meio é dispensável. Mas também não sou ingrato para desprezar o que o nosso fascismo tinha de simpático. Uma das coisas boas eram os míticos três éfes: Fátima, futebol e fado. Serei insuspeito nesta matéria. De futebol continuo a gostar mas, por muito excelente que seja o caldo verde com chouriço, não troco um animado concerto de pós-punk por uma noite de fados à luz da vela em que está tudo com aquele ar de quem já está há 10 minutos a ver um filme de Manoel de Oliveira enquanto uma voz esganiçada desabafa umas mágoas. Depois, tirando alguns santuários gastronómicos, nada me faz ter vontade de ir a Fátima, nem de carro e muito menos a pé pois para isso já me bastam as voltas à avenida depois de jantar e não tem a subida do Pafarrão.
Mas isso não me impede de reconhecer durante o fascismo uma mais democrática, racional e justa distribuição da alienação popular. Eusébio era um ídolo mas acompanhado de Amália, Marceneiro, Hermínia Silva, Nossa Senhora, pastorinhos, santinhos e priores em geral, dividindo-se assim o mal pelas aldeias, tão caras à paroquialidade salazarista. Hoje, pelo contrário, já não existem aldeias de alienação pois o fado deixou de esganiçar as gargantas do povo que agora esganiça os dedos pelas redes sociais, e a religião já não é o que era, estando tudo concentrado na megametrópole do futebol. A brilhante aura de um Eusébio, de um Hilário, de um Rolando ou de um Jacinto João seria anulada pelos potentes e prepotentes holofotes de Bruno de Carvalho, mulher de Bruno de Carvalho, ex-mulher de Bruno de Carvalho, filha de Bruno de Carvalho, 3652 psiquiatras de Bruno de carvalho, Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa e suas mulheres, Francisco J. Marques, Nuno Saraiva, Pedro Guerra, Dias Ferreira, Dolores Aveiro e netos, Octávio Machado e seus clones, o bombeiro Marta, André Ventura, emails, escutas, fruta, apito dourado, túnel, esquemas, sistema, arbitragens, VAR, mão na bola ou bola na mão, estatutos, providências cautelares, assembleias gerais, conferências de imprensa em directo antes dos jogos, depois dos jogos e quando não há jogos ou só mesmo um solitário microfone em cima da mesa.
O futebol pode ter sido uma espécie de bengala do regime fascista. Mas o que temos hoje é o próprio regime democrático a ser uma bengala do futebol, a criatura tornada monstro que com as suas garras esganiça a democracia. De um futebol na era fascista passámos assim à era do futebol fascista: totalitário, despótico e concentracionário. Inconformado com este fado e esta nova e única religião, serei pois reacionário, preferindo honrar a memória de um tempo em que o futebol só luzia graças a jogadores, sua única e verdadeira casta, que apenas jogavam para nos darem alegrias e tristezas.
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