25 de Abril Nunca Mais!
Opinião » 2020-05-09 » José Ricardo Costa"O 25 de Abril é como o primeiro atleta de uma estafeta 4x400 metros. Arrancou, fez o melhor que pôde mas termina a sua prova mal passa o testemunho."
Sempre que o calendário faz regressar o 25 de Abril, é também o clássico “25 de Abril sempre!” que regressa. A frase é bonita e voluntariosa mas tem um problema: não dá que o 25 de Abril seja para sempre. Ao invés, será mesmo caso para dizer “25 de Abril nunca mais!”.
Claro que me lembro bem do 25 de Abril. Um dia cinzento mas que começou muito bem graças a um madrugador telefonema de um tio de Lisboa que fez com que não me deixassem ir à escola, passado o dia alegremente na cama a ler e a ouvir canções de intervenção que a rádio transmitiu todo o dia, algumas das quais já conhecidas lá de casa e que estranhei estar a ouvir por não ser o habitual na rádio ao longo daqueles pubescentes anos.
Só que o dia 25 de Abril não foi dia 25 de Abril nenhum. Nem para mim nem para ninguém. Como a Revolução Francesa não foi Revolução Francesa nenhuma para um francês de 1789, o Renascimento nada significa para um italiano do século XVI, nem um ateniense da Grécia Antiga sabe que está na Grécia Antiga e a viver antes de Cristo, não sabendo o próprio Cristo que nasceu antes de Cristo e morreu depois de Cristo. Só depois se começou a perceber melhor o que foi o dia 25 de Abril, formando-se a ideia de que não foi um dia desenxabido e sem história como um qualquer 22 de Novembro ou 15 de Fevereiro, mas que o 25 de Abril era o “25 de Abril”, como o 1 de Dezembro é “1 de Dezembro” e o 5 de Outubro “5 de Outubro”.
Daí não ser possível viver para sempre o tal dia inicial e limpo de que fala a poeta. Não se pode estar viver uma coisa e ao mesmo tempo a sentir a nostalgia que temos dela. Querer o 25 de Abril para sempre é como querer estar sempre a ouvir pela primeira vez o “Dark Side of the Moon”. Não dá. Até porque o próprio tempo, sendo um grande escultor, é também um vento que causa erosões nas paisagens históricas, separando as coisas da memória que temos delas.
Mas não é só por isso que o 25 de Abril é para ser nunca mais. É também “nunca mais” naquele sentido em que se está muito à espera de alguma coisa, por exemplo, as prendas de Natal, o primeiro dia de férias ou o Sporting ser campeão, levando o desespero a dizer “Fogo, nunca mais!”. No caso do 25 de Abril será “Fogo, nunca mais!” sobretudo para quem pede “25 de Abril sempre!”, uma vez que continuam à espera daquilo para que o 25 de Abril nunca serviu.
O 25 de Abril foi muito bom porque acabou com um regime que era um atraso de vida no seio de uma Europa que, à excepção da Espanha e da Grécia, era livre e arejada até à Cortina de Ferro, onde outras horríveis ditaduras esmagavam os seus povos. Foi mais ou menos assim como andar duas semanas com uma horrenda dor de dentes e tomar um antibiótico graças ao qual se acorda no dia seguinte sem dor. Dois ou três dias depois ainda vamos tendo uma memória vívida da dor de dentes, porém, meses depois, embora guardando a episódica memória da dor de dentes, os já muitos dias passados sem essa horrenda dor, afastam-nos cada vez mais dessa sensação.
Pronto, o 25 de Abril também é um bocadinho assim. Eu gosto da memória do 25 de Abril mas o facto de já termos quase tantos anos pós- 25 de Abril como os 48 da longa noite com dor de dentes, faz com que pensemos cada vez menos na dor dentes e menos ainda no antibiótico que acabou com a dor de dentes. E, hoje, estar sem dor de dentes, é o nosso normal: uma sociedade democrática, livre e aberta, a qual iria sempre surgir mais cedo ou mais tarde. Se não fosse no dia 25 de Abril de 1974 teria sido, mais coisa menos coisa, antes ou depois, como aconteceu logo com a Grécia e a Espanha e anos depois com o que estava para lá da Cortina de Ferro.
Mas para muitos o 25 de Abril não foi apenas isso. Houve dois 25 de Abril: um, que é o meu, para fazer um país simplesmente normal, com as suas virtudes e defeitos, outro para criação de uma utopia (eu diria distopia) à revelia do que à época já seria o mais elementar bom senso social, político, económico e até cultural. Daí que, para muitos, ainda falte “Cumprir Abril” ou as supostas “Conquistas de Abril” e, por isso mesmo, bem podem esperar a gritar “Abril nunca mais” pois é mesmo caso ser nunca mais.
O 25 de Abril é como o primeiro atleta de uma estafeta 4x400 metros. Arrancou, fez o melhor que pôde mas termina a sua prova mal passa o testemunho. O que Portugal tem hoje de mau e de bom, os seus vícios e virtudes, os problemas que conseguiu ou não resolver, já nada têm que ver com o 25 de Abril mas apenas com os méritos e deméritos de um secularíssimo pequeno país do canto ocidental da Europa e em relação ao que tem vindo a acontecer no mundo.
Há um pequeno conto de Borges chamado “O Último Homem” onde se fala de um último homem da história a ter um contacto com a cultura pagã numa cultura já completamente cristianizada. Também um dia irá morrer o último homem da história que ainda viveu o 25 de Abril, tornando-se este, assim, definitivamente nunca mais e definitivamente para sempre o que estava destinado a ser: uma importante personagem no panteão das históricas datas de Portugal. Nesse dia, então, cumpre-se o que disse o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger sobre o 25 de Abril quando cá regressou em 1986: “Coisa inesquecível que já se esqueceu”.
25 de Abril Nunca Mais!
Opinião » 2020-05-09 » José Ricardo CostaO 25 de Abril é como o primeiro atleta de uma estafeta 4x400 metros. Arrancou, fez o melhor que pôde mas termina a sua prova mal passa o testemunho.
Sempre que o calendário faz regressar o 25 de Abril, é também o clássico “25 de Abril sempre!” que regressa. A frase é bonita e voluntariosa mas tem um problema: não dá que o 25 de Abril seja para sempre. Ao invés, será mesmo caso para dizer “25 de Abril nunca mais!”.
Claro que me lembro bem do 25 de Abril. Um dia cinzento mas que começou muito bem graças a um madrugador telefonema de um tio de Lisboa que fez com que não me deixassem ir à escola, passado o dia alegremente na cama a ler e a ouvir canções de intervenção que a rádio transmitiu todo o dia, algumas das quais já conhecidas lá de casa e que estranhei estar a ouvir por não ser o habitual na rádio ao longo daqueles pubescentes anos.
Só que o dia 25 de Abril não foi dia 25 de Abril nenhum. Nem para mim nem para ninguém. Como a Revolução Francesa não foi Revolução Francesa nenhuma para um francês de 1789, o Renascimento nada significa para um italiano do século XVI, nem um ateniense da Grécia Antiga sabe que está na Grécia Antiga e a viver antes de Cristo, não sabendo o próprio Cristo que nasceu antes de Cristo e morreu depois de Cristo. Só depois se começou a perceber melhor o que foi o dia 25 de Abril, formando-se a ideia de que não foi um dia desenxabido e sem história como um qualquer 22 de Novembro ou 15 de Fevereiro, mas que o 25 de Abril era o “25 de Abril”, como o 1 de Dezembro é “1 de Dezembro” e o 5 de Outubro “5 de Outubro”.
Daí não ser possível viver para sempre o tal dia inicial e limpo de que fala a poeta. Não se pode estar viver uma coisa e ao mesmo tempo a sentir a nostalgia que temos dela. Querer o 25 de Abril para sempre é como querer estar sempre a ouvir pela primeira vez o “Dark Side of the Moon”. Não dá. Até porque o próprio tempo, sendo um grande escultor, é também um vento que causa erosões nas paisagens históricas, separando as coisas da memória que temos delas.
Mas não é só por isso que o 25 de Abril é para ser nunca mais. É também “nunca mais” naquele sentido em que se está muito à espera de alguma coisa, por exemplo, as prendas de Natal, o primeiro dia de férias ou o Sporting ser campeão, levando o desespero a dizer “Fogo, nunca mais!”. No caso do 25 de Abril será “Fogo, nunca mais!” sobretudo para quem pede “25 de Abril sempre!”, uma vez que continuam à espera daquilo para que o 25 de Abril nunca serviu.
O 25 de Abril foi muito bom porque acabou com um regime que era um atraso de vida no seio de uma Europa que, à excepção da Espanha e da Grécia, era livre e arejada até à Cortina de Ferro, onde outras horríveis ditaduras esmagavam os seus povos. Foi mais ou menos assim como andar duas semanas com uma horrenda dor de dentes e tomar um antibiótico graças ao qual se acorda no dia seguinte sem dor. Dois ou três dias depois ainda vamos tendo uma memória vívida da dor de dentes, porém, meses depois, embora guardando a episódica memória da dor de dentes, os já muitos dias passados sem essa horrenda dor, afastam-nos cada vez mais dessa sensação.
Pronto, o 25 de Abril também é um bocadinho assim. Eu gosto da memória do 25 de Abril mas o facto de já termos quase tantos anos pós- 25 de Abril como os 48 da longa noite com dor de dentes, faz com que pensemos cada vez menos na dor dentes e menos ainda no antibiótico que acabou com a dor de dentes. E, hoje, estar sem dor de dentes, é o nosso normal: uma sociedade democrática, livre e aberta, a qual iria sempre surgir mais cedo ou mais tarde. Se não fosse no dia 25 de Abril de 1974 teria sido, mais coisa menos coisa, antes ou depois, como aconteceu logo com a Grécia e a Espanha e anos depois com o que estava para lá da Cortina de Ferro.
Mas para muitos o 25 de Abril não foi apenas isso. Houve dois 25 de Abril: um, que é o meu, para fazer um país simplesmente normal, com as suas virtudes e defeitos, outro para criação de uma utopia (eu diria distopia) à revelia do que à época já seria o mais elementar bom senso social, político, económico e até cultural. Daí que, para muitos, ainda falte “Cumprir Abril” ou as supostas “Conquistas de Abril” e, por isso mesmo, bem podem esperar a gritar “Abril nunca mais” pois é mesmo caso ser nunca mais.
O 25 de Abril é como o primeiro atleta de uma estafeta 4x400 metros. Arrancou, fez o melhor que pôde mas termina a sua prova mal passa o testemunho. O que Portugal tem hoje de mau e de bom, os seus vícios e virtudes, os problemas que conseguiu ou não resolver, já nada têm que ver com o 25 de Abril mas apenas com os méritos e deméritos de um secularíssimo pequeno país do canto ocidental da Europa e em relação ao que tem vindo a acontecer no mundo.
Há um pequeno conto de Borges chamado “O Último Homem” onde se fala de um último homem da história a ter um contacto com a cultura pagã numa cultura já completamente cristianizada. Também um dia irá morrer o último homem da história que ainda viveu o 25 de Abril, tornando-se este, assim, definitivamente nunca mais e definitivamente para sempre o que estava destinado a ser: uma importante personagem no panteão das históricas datas de Portugal. Nesse dia, então, cumpre-se o que disse o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger sobre o 25 de Abril quando cá regressou em 1986: “Coisa inesquecível que já se esqueceu”.
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