FUI LÁ ATRÁS, VOLTO JÁ - josé mota pereira
Opinião » 2020-11-06 » José Mota Pereira"A experiência destas semanas sem smartphone revelou-me, enfim, o que já suspeitava"
Passados três meses da sua aquisição, o smartphone decidiu entregar a alma ao criador, pelo que o cronista teve que o substituir temporariamente, aguardando a devida recuperação do paciente tecnológico. Sendo a doença temporária e recuperável no prazo razoável de três semanas, decidiu o cronista investir a modesta quantia de cerca de vinte moedas de euros na aquisição de um aparelho telefónico portátil, a que dantes chamávamos telemóvel, para permitir o seu contacto com os outros humanos do Mundo. Surpreendentemente, tal aquisição, que poderia ser motivo de grandes desgostos, numa viagem do tempo ao ano 2000, tem revelado algumas coisas inesperadas que aqui e agora partilho.
O primeiro ah! de espanto foi dado ao abrir a caixa onde o telemóvel novinho em folha se encontrava embalado. Um ahhhh! exclamado ao verificar que o telemóvel era made in Europa, mais precisamente em... Aveiro, Portugal! Convencido que no rectângulo luso já pouco se produzia, desconhecia que em Portugal, em pleno ano de 2020, há quem se disponha a investir em conhecimento e tecnologia nacional num mundo altamente global, como o das tecnologias. Um telemóvel português? Sim, existe! Ok, sejamos sinceros, o modelo é muito básico, coisa simples e os nórdicos já fabricavam aparelhos parecidos há 20 anos. Mas, a verdade é que o meu novo telemóvel revelou que há em Portugal conhecimento, investidores e capacidade industrial de entrar nestes mercados tecnológicos. No combate entre Samsungs, Huaweys, Apples e afins, Portugal entra na competição global com a sua Inforlândia – sim, é este o patusco nome da fábrica aveirense.
Lido assim, é como se estivéssemos a entrar numa guerra mundial onde uns entram com mísseis atómicos e esta nação valente e imortal se apresentasse com bisnagas de água do Carnaval de Ovar. Mas não nos iludamos com aparências: o aparelho funciona bem, é eficaz, cumpre a sua função e o salto tecnológico a dar já tem o requisito principal. O aparelho reproduz capacidade técnica que coloca, pelo menos no mesmo patamar de conhecimento, um qualquer engenheiro William Grant (eu sabia que um dia ia usar uma marca de whisky numa crónica) da Apple com um engenheiro Fábio Ruben formado nas universidades portuguesas. Afirmar isto com orgulho não é patriotismo bacoco de fazer cantar o hino! É acreditar que a soberania num mundo globalizado também se defende na valorização do conhecimento e da produção nacional. Outros fatores (capital financeiro?) faltarão... mas serão fatalmente insuperáveis?
Outra grande vantagem do telemóvel que me tem acompanhado é de âmbito ecológico. Ao contrário do smartphone, que vê a bateria de lítio descarregar em grande velocidade, sujeitando-se a um desgaste permanente, este telemóvel tem uma bateria que é um verdadeiro descanso. A sua carga dura vários dias e quando precisa carrega muito rapidamente, com ganhos evidentes de poupança de energia elétrica, da própria bateria e em consequência dos minerais presentes na sua composição. Resultado: telemóvel 2 - smartphone, zero.
Finalmente e para concluir, a ausência do smartphone, fazendo-me recuar no tempo (no mínimo dez anos) tirou-me da palma das mãos o acesso permanente e constante às notificações recebidas por e-mail, às notificações das redes sociais, das aplicações de diversos jornais, das redes de contacto pessoal como o messenger ou o whatsapp. O acesso a quase todas estas “maravilhas” continuou a ser feito, mas a um ritmo mais lento, obrigando-me a deslocar para junto do computador (que mesmo sendo portátil, não cabe no bolso nem na palma da mão), cumprindo o ritual de abrir a caixa de e-mail apenas duas ou três vezes por dia, passei a ver muito menos notícias, obrigando-me a fazer escolhas e a selecionar apenas o que tenho interesse, mantendo-me razoavelmente informado sobre tudo o que se passa no Mundo.
Não defendo um regresso ao passado, recuso sempre o conservadorismo do “back to basics” e muito menos canto hinos aos bons velhos tempos ao jeito do saudoso Archie Bunker da mítica série televisiva “Uma família às direitas”. Mas, esta experiência destas semanas releva como é ilusório o frenesim tecnológico em que vivemos, dando-nos falsas aparências de sabermos mais, de estarmos mais informados e mais perto uns dos outros. A experiência destas semanas sem smartphone revelou-me, enfim, o que já suspeitava:
1. Andamos a trabalhar, produzir e a fazer muito mais pelo mesmo dinheiro.
2. O trabalho e as suas preocupações entram-nos a toda a hora pela casa dentro, sem limite de físico nem de horário, através do e-mail que se recebe, da mensagem que chega e para a qual estamos sempre disponíveis para responder com o aparelho sempre ligado na palma da mão;
3. Vivemos afogados em tralha informativa que não selecionamos, que nos cai em catadupa sem critério, deixando-nos sujeitos a todo o tipo de tropelias, meias verdades e mentiras que nos impingem, diminuindo o critério e o espírito crítico, geradores de uma acentuada acefalia social.
Entretanto, com tantas reflexões, ando inexplicavelmente “deserto” para voltar a ter o smartphone reparado na palma minha da mão. Na verdade, estranhamente ou não, o cronista, mesmo depois de tudo o que aqui escreveu, cede como qualquer mortal à tentação consumista, deixando as suas pulsões emocionais sobreporem-se às suas reflexões racionais. Afinal, nenhum de nós está imune às pulsões emocionais nas nossas decisões enquanto consumidores e a sociedade de mercado sabe e alimenta-se disso. Razão pela qual, talvez, a construção de um qualquer sistema social e económico alternativo ao capitalismo não possa ignorar (por mais que as suas análises teóricas estejam racionalmente corretas) as questões emocionais na determinação das opções individuais e colectivas do ser humano. Mas, essa é uma reflexão a que o cronista não se sente habilitado a desenvolver. Estou, por enquanto, mais preparado para mandar meros bitaites pelo Facebook e afins, quando um dia destes arrumar na sua caixinha o telemóvel fabricado em Aveiro e regressar de novo, com o smartphone na mão, ao agitado e pandemónico ano de 2020.
FUI LÁ ATRÁS, VOLTO JÁ - josé mota pereira
Opinião » 2020-11-06 » José Mota PereiraA experiência destas semanas sem smartphone revelou-me, enfim, o que já suspeitava
Passados três meses da sua aquisição, o smartphone decidiu entregar a alma ao criador, pelo que o cronista teve que o substituir temporariamente, aguardando a devida recuperação do paciente tecnológico. Sendo a doença temporária e recuperável no prazo razoável de três semanas, decidiu o cronista investir a modesta quantia de cerca de vinte moedas de euros na aquisição de um aparelho telefónico portátil, a que dantes chamávamos telemóvel, para permitir o seu contacto com os outros humanos do Mundo. Surpreendentemente, tal aquisição, que poderia ser motivo de grandes desgostos, numa viagem do tempo ao ano 2000, tem revelado algumas coisas inesperadas que aqui e agora partilho.
O primeiro ah! de espanto foi dado ao abrir a caixa onde o telemóvel novinho em folha se encontrava embalado. Um ahhhh! exclamado ao verificar que o telemóvel era made in Europa, mais precisamente em... Aveiro, Portugal! Convencido que no rectângulo luso já pouco se produzia, desconhecia que em Portugal, em pleno ano de 2020, há quem se disponha a investir em conhecimento e tecnologia nacional num mundo altamente global, como o das tecnologias. Um telemóvel português? Sim, existe! Ok, sejamos sinceros, o modelo é muito básico, coisa simples e os nórdicos já fabricavam aparelhos parecidos há 20 anos. Mas, a verdade é que o meu novo telemóvel revelou que há em Portugal conhecimento, investidores e capacidade industrial de entrar nestes mercados tecnológicos. No combate entre Samsungs, Huaweys, Apples e afins, Portugal entra na competição global com a sua Inforlândia – sim, é este o patusco nome da fábrica aveirense.
Lido assim, é como se estivéssemos a entrar numa guerra mundial onde uns entram com mísseis atómicos e esta nação valente e imortal se apresentasse com bisnagas de água do Carnaval de Ovar. Mas não nos iludamos com aparências: o aparelho funciona bem, é eficaz, cumpre a sua função e o salto tecnológico a dar já tem o requisito principal. O aparelho reproduz capacidade técnica que coloca, pelo menos no mesmo patamar de conhecimento, um qualquer engenheiro William Grant (eu sabia que um dia ia usar uma marca de whisky numa crónica) da Apple com um engenheiro Fábio Ruben formado nas universidades portuguesas. Afirmar isto com orgulho não é patriotismo bacoco de fazer cantar o hino! É acreditar que a soberania num mundo globalizado também se defende na valorização do conhecimento e da produção nacional. Outros fatores (capital financeiro?) faltarão... mas serão fatalmente insuperáveis?
Outra grande vantagem do telemóvel que me tem acompanhado é de âmbito ecológico. Ao contrário do smartphone, que vê a bateria de lítio descarregar em grande velocidade, sujeitando-se a um desgaste permanente, este telemóvel tem uma bateria que é um verdadeiro descanso. A sua carga dura vários dias e quando precisa carrega muito rapidamente, com ganhos evidentes de poupança de energia elétrica, da própria bateria e em consequência dos minerais presentes na sua composição. Resultado: telemóvel 2 - smartphone, zero.
Finalmente e para concluir, a ausência do smartphone, fazendo-me recuar no tempo (no mínimo dez anos) tirou-me da palma das mãos o acesso permanente e constante às notificações recebidas por e-mail, às notificações das redes sociais, das aplicações de diversos jornais, das redes de contacto pessoal como o messenger ou o whatsapp. O acesso a quase todas estas “maravilhas” continuou a ser feito, mas a um ritmo mais lento, obrigando-me a deslocar para junto do computador (que mesmo sendo portátil, não cabe no bolso nem na palma da mão), cumprindo o ritual de abrir a caixa de e-mail apenas duas ou três vezes por dia, passei a ver muito menos notícias, obrigando-me a fazer escolhas e a selecionar apenas o que tenho interesse, mantendo-me razoavelmente informado sobre tudo o que se passa no Mundo.
Não defendo um regresso ao passado, recuso sempre o conservadorismo do “back to basics” e muito menos canto hinos aos bons velhos tempos ao jeito do saudoso Archie Bunker da mítica série televisiva “Uma família às direitas”. Mas, esta experiência destas semanas releva como é ilusório o frenesim tecnológico em que vivemos, dando-nos falsas aparências de sabermos mais, de estarmos mais informados e mais perto uns dos outros. A experiência destas semanas sem smartphone revelou-me, enfim, o que já suspeitava:
1. Andamos a trabalhar, produzir e a fazer muito mais pelo mesmo dinheiro.
2. O trabalho e as suas preocupações entram-nos a toda a hora pela casa dentro, sem limite de físico nem de horário, através do e-mail que se recebe, da mensagem que chega e para a qual estamos sempre disponíveis para responder com o aparelho sempre ligado na palma da mão;
3. Vivemos afogados em tralha informativa que não selecionamos, que nos cai em catadupa sem critério, deixando-nos sujeitos a todo o tipo de tropelias, meias verdades e mentiras que nos impingem, diminuindo o critério e o espírito crítico, geradores de uma acentuada acefalia social.
Entretanto, com tantas reflexões, ando inexplicavelmente “deserto” para voltar a ter o smartphone reparado na palma minha da mão. Na verdade, estranhamente ou não, o cronista, mesmo depois de tudo o que aqui escreveu, cede como qualquer mortal à tentação consumista, deixando as suas pulsões emocionais sobreporem-se às suas reflexões racionais. Afinal, nenhum de nós está imune às pulsões emocionais nas nossas decisões enquanto consumidores e a sociedade de mercado sabe e alimenta-se disso. Razão pela qual, talvez, a construção de um qualquer sistema social e económico alternativo ao capitalismo não possa ignorar (por mais que as suas análises teóricas estejam racionalmente corretas) as questões emocionais na determinação das opções individuais e colectivas do ser humano. Mas, essa é uma reflexão a que o cronista não se sente habilitado a desenvolver. Estou, por enquanto, mais preparado para mandar meros bitaites pelo Facebook e afins, quando um dia destes arrumar na sua caixinha o telemóvel fabricado em Aveiro e regressar de novo, com o smartphone na mão, ao agitado e pandemónico ano de 2020.
Caminho de Abril - maria augusta torcato » 2024-04-22 » Maria Augusta Torcato Olho para o meu caminho e fico contente. Acho mesmo que fiz o caminho de Abril. O caminho que Abril representa. No entanto, a realidade atual e os desafios diários levam-me a desejar muito que este caminho não seja esquecido, não por querer que ele se repita, mas para não nos darmos conta, quase sem tempo de manteiga nos dentes, que estamos, outra vez, lá muito atrás e há que fazer de novo o caminho com tudo o que isso implica e que hoje seria incompreensível e inaceitável. |
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia » 2024-04-10 » Jorge Carreira Maia Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. |
Eleições "livres"... » 2024-03-18 » Hélder Dias |
Este é o meu único mundo! - antónio mário santos » 2024-03-08 » António Mário Santos Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza. |
Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato » 2024-03-08 » Maria Augusta Torcato Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. |
A crise das democracias liberais - jorge carreira maia » 2024-03-08 » Jorge Carreira Maia A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. |
A carne e os ossos - pedro borges ferreira » 2024-03-08 » Pedro Ferreira Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA. |
O Flautista de Hamelin... » 2024-02-28 » Hélder Dias |
Este mundo e o outro - joão carlos lopes » 2024-02-22 Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”. |
2032: a redenção do Planeta - jorge cordeiro simões » 2024-02-22 » Jorge Cordeiro Simões
|
» 2024-04-22
» Maria Augusta Torcato
Caminho de Abril - maria augusta torcato |
» 2024-04-10
» Jorge Carreira Maia
As eleições e o triunfo do pensamento mágico - jorge carreira maia |