Pés e cabeça - josé ricardo costa
Ainda garoto, meti na cabeça que era anarquista só porque pensava e dizia umas coisas subversivas. Graças a Deus, que nesse tempo era Bakunine, depressa percebi que estava apenas a ser parvo. Cheguei mesmo a ver como se faziam cocktails Molotov, mas devido à Físico-Química ser a minha pior disciplina e a uma tremenda inépcia manual, eu seria sempre a primeira vítima da minha subversão. E quanto aos Molotov, a minha preferência ia mais para aqueles com doce de ovos, bem menos perigosos, excepto se armadilhados com salmonelas.
Também parvoíce, e da catedrática, há-de ter sido o que levou à decapitação do S. António ali na rotunda. Antes ficassem os terroristas sossegados a tentarem ser poetas malditos ante um copo de absinto, a ler os clássicos russos, ou se isso for pedir muito, a entreterem-se com umas imperais e tremoços enquanto dizem mal da religião e da igreja, caso a parvoíce tivesse motivação ideológica.
Acontece que a minha costela hegeliana, sempre de olho na força da negatividade, levou-me a uma leitura mais generosa deste crime de lesa-santo. Santo que sempre me deixou indiferente, o mesmo já não podendo dizer da estátua pela angustiante fatalidade de ter de passar por ela várias vezes ao dia, como se não bastasse já o restante filme de terror que, com honrosas excepções, é a arte pública em Torres Novas.
Angústia que começou logo na primeira vez que me deparei com a estátua, ao ver dela emanar o fétido bafo do mau gosto que logo me causou uma convulsão visual que me envesgou o olhar e revirou as entranhas mentais. Apesar de nesse dia a estátua ter ainda a cabeça tão assente nos ombros como os pés no chão, logo a considerei artisticamente sem «pés nem cabeça», descendo ao subterrâneo nível da Cova da Iria, embora não, infelizmente, do museu de cera, para que assim derretesse mal chegasse o Verão. Não pude assim deixar de apreciar, alguns dias depois, a figura do santo já despojado da sua cabeça, bem mais arejada e de acordo com padrões estéticos e artísticos contemporâneos.
Mesmo que sejamos conservadores, apreciando uma escultura mais clássica, a rigidez bizantina e anémica lividez da estátua oferecem-nos a sugestão de uma peça grega ou romana. Aceitando-se a sugestão, haverá então coisa mais bela, misteriosa e romântica do que uma estátua incompleta? A Vénus de Milo teria hoje o mesmo encanto com os braços? Ou a Vitória de Samotrácia com a cabeça? Como teria Rilke escrito o belo poema sobre o arcaico torso de Apolo se lá estivesse a cabeça? Não por acaso, desde o século XVIII que há um fascínio pela incompletude das ruínas, sendo mesmo construídas de raiz como acontece em Monserrate, uma folly, é verdade, mas belo e fértil alimento para os olhos.
Mas também é bom lembrar que estamos no século XXI e que existe arte do Gótico para a frente. Daí que, se Torres Novas quer estar também no centro do progresso artístico, mais apropriado do que ver o santo e o menino como se estivessem a posar para uma fotografia dos anos 20 do século passado, será exibir a verdadeira essência do santo, em consonância com os mais ousados cânones da arte moderna, segundo os quais um rosto não tem de ter boca ou nariz, ou a boca pode estar para um lado e o nariz para o outro e outras coisas assim do género.
A qualquer artista contemporâneo pararia a digestão se depois de almoço visse a estátua ainda com cabeça, por saber bem, como dizia Picasso, que a arte é para manifestar o que se pensa, não o que se vê, o que não implica nada contra as cabeças, como acontece com a de D. Sancho em frente ao castelo. E no que pensa o povo quando confrontado com a figura do santo? Durante as suas festas, passará pela cabeça de algum católico com uma perna de frango numa mão e uma mini na outra, a ideia do popular santo como Pater Scientia? A alguém que vai na procissão, passará pela sua católica consciência uma devoção ao Malleus Hereticorum? Algum casal que canta na marcha faz ideia de quem foi o Doctor Veritatis que impressionou a Europa intelectual do seu tempo?
Por isso, se o artista contemporâneo visse a estátua já sem a cabeça, em vez de parar a digestão, activaria a cabeça, a sua, claro, para reflectir no verdadeiro significado da obra, ocorrendo-lhe então pensar que o que os devotos católicos veneram não é o intelectual, disposição que por inerência não dispensaria a cabeça numa estátua de Aristóteles ou Nuno Rogeiro, mas o homem santo, bom e milagreiro, tudo coisas que vêm do coração, ou de um órgão místico bem arredado da caixa craniana.
Daí que um S. António sem cabeça consiga o verdadeiro milagre de conciliar uma linguagem artística contemporânea, a qual desvaloriza toda e qualquer rigidez mimética, com a verdadeira essência do santo, para o povo que dança e canta na marcha, se atira à sardinha na festa e que o venera no silêncio da procissão.
Por isso, embora algo paradoxal, uma estátua do S. António sem cabeça é a que terá verdadeiramente mais pés e cabeça, devendo assim ficar para sempre, embora, ideal, ideal, ideal, tenho que admitir, seria ficarem só mesmo os ciprestes.
FOTO: Cemitério Dorotheenstädtischer II, Berlim
Pés e cabeça - josé ricardo costa
Ainda garoto, meti na cabeça que era anarquista só porque pensava e dizia umas coisas subversivas. Graças a Deus, que nesse tempo era Bakunine, depressa percebi que estava apenas a ser parvo. Cheguei mesmo a ver como se faziam cocktails Molotov, mas devido à Físico-Química ser a minha pior disciplina e a uma tremenda inépcia manual, eu seria sempre a primeira vítima da minha subversão. E quanto aos Molotov, a minha preferência ia mais para aqueles com doce de ovos, bem menos perigosos, excepto se armadilhados com salmonelas.
Também parvoíce, e da catedrática, há-de ter sido o que levou à decapitação do S. António ali na rotunda. Antes ficassem os terroristas sossegados a tentarem ser poetas malditos ante um copo de absinto, a ler os clássicos russos, ou se isso for pedir muito, a entreterem-se com umas imperais e tremoços enquanto dizem mal da religião e da igreja, caso a parvoíce tivesse motivação ideológica.
Acontece que a minha costela hegeliana, sempre de olho na força da negatividade, levou-me a uma leitura mais generosa deste crime de lesa-santo. Santo que sempre me deixou indiferente, o mesmo já não podendo dizer da estátua pela angustiante fatalidade de ter de passar por ela várias vezes ao dia, como se não bastasse já o restante filme de terror que, com honrosas excepções, é a arte pública em Torres Novas.
Angústia que começou logo na primeira vez que me deparei com a estátua, ao ver dela emanar o fétido bafo do mau gosto que logo me causou uma convulsão visual que me envesgou o olhar e revirou as entranhas mentais. Apesar de nesse dia a estátua ter ainda a cabeça tão assente nos ombros como os pés no chão, logo a considerei artisticamente sem «pés nem cabeça», descendo ao subterrâneo nível da Cova da Iria, embora não, infelizmente, do museu de cera, para que assim derretesse mal chegasse o Verão. Não pude assim deixar de apreciar, alguns dias depois, a figura do santo já despojado da sua cabeça, bem mais arejada e de acordo com padrões estéticos e artísticos contemporâneos.
Mesmo que sejamos conservadores, apreciando uma escultura mais clássica, a rigidez bizantina e anémica lividez da estátua oferecem-nos a sugestão de uma peça grega ou romana. Aceitando-se a sugestão, haverá então coisa mais bela, misteriosa e romântica do que uma estátua incompleta? A Vénus de Milo teria hoje o mesmo encanto com os braços? Ou a Vitória de Samotrácia com a cabeça? Como teria Rilke escrito o belo poema sobre o arcaico torso de Apolo se lá estivesse a cabeça? Não por acaso, desde o século XVIII que há um fascínio pela incompletude das ruínas, sendo mesmo construídas de raiz como acontece em Monserrate, uma folly, é verdade, mas belo e fértil alimento para os olhos.
Mas também é bom lembrar que estamos no século XXI e que existe arte do Gótico para a frente. Daí que, se Torres Novas quer estar também no centro do progresso artístico, mais apropriado do que ver o santo e o menino como se estivessem a posar para uma fotografia dos anos 20 do século passado, será exibir a verdadeira essência do santo, em consonância com os mais ousados cânones da arte moderna, segundo os quais um rosto não tem de ter boca ou nariz, ou a boca pode estar para um lado e o nariz para o outro e outras coisas assim do género.
A qualquer artista contemporâneo pararia a digestão se depois de almoço visse a estátua ainda com cabeça, por saber bem, como dizia Picasso, que a arte é para manifestar o que se pensa, não o que se vê, o que não implica nada contra as cabeças, como acontece com a de D. Sancho em frente ao castelo. E no que pensa o povo quando confrontado com a figura do santo? Durante as suas festas, passará pela cabeça de algum católico com uma perna de frango numa mão e uma mini na outra, a ideia do popular santo como Pater Scientia? A alguém que vai na procissão, passará pela sua católica consciência uma devoção ao Malleus Hereticorum? Algum casal que canta na marcha faz ideia de quem foi o Doctor Veritatis que impressionou a Europa intelectual do seu tempo?
Por isso, se o artista contemporâneo visse a estátua já sem a cabeça, em vez de parar a digestão, activaria a cabeça, a sua, claro, para reflectir no verdadeiro significado da obra, ocorrendo-lhe então pensar que o que os devotos católicos veneram não é o intelectual, disposição que por inerência não dispensaria a cabeça numa estátua de Aristóteles ou Nuno Rogeiro, mas o homem santo, bom e milagreiro, tudo coisas que vêm do coração, ou de um órgão místico bem arredado da caixa craniana.
Daí que um S. António sem cabeça consiga o verdadeiro milagre de conciliar uma linguagem artística contemporânea, a qual desvaloriza toda e qualquer rigidez mimética, com a verdadeira essência do santo, para o povo que dança e canta na marcha, se atira à sardinha na festa e que o venera no silêncio da procissão.
Por isso, embora algo paradoxal, uma estátua do S. António sem cabeça é a que terá verdadeiramente mais pés e cabeça, devendo assim ficar para sempre, embora, ideal, ideal, ideal, tenho que admitir, seria ficarem só mesmo os ciprestes.
FOTO: Cemitério Dorotheenstädtischer II, Berlim
![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |
![]() Gisèle Pelicot vive e cresceu em França. Tem 71 anos. Casou-se aos 20 anos de idade com Dominique Pelicot, de 72 anos, hoje reformado. Teve dois filhos. Gisèle não sabia que a pessoa que escolheu para estar ao seu lado ao longo da vida a repudiava ao ponto de não suportar a ideia de não lhe fazer mal, tudo isto em segredo e com a ajuda de outros homens, que, como ele, viviam vidas aparentemente, parcialmente e eticamente comuns. |
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![]() Deveria seguir-se a demolição do prédio que foi construído em cima do rio há mais de cinquenta anos e a libertação de terrenos junto da fábrica velha Estamos em tempo de cheias no nosso Rio Almonda. |
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![]() É um banco, talvez, feliz! Era uma vez um banco. Não. É um banco e um banco, talvez, feliz! E não. Não é um banco dos que nos desassossegam pelo que nos custam e cobram, mas dos que nos permitem sossegar, descansar. |
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