Sabiam - margarida trindade
"Nunca a humanidade teve tanta tecnologia e tanta informação disponível e acessível, e por isso nunca esteve tão confrontada com evidências fortes do mal"
Os nossos quotidianos estão a passar por uma transformação inédita. Pode ser já um lugar comum dizer isto, mas nunca me vou habituar a andar sempre de máscara, a falar com a máscara colocada e a receber e comunicar com os outros sem lhes perceber a expressão.
Este filme futurista onde nos vemos metidos hoje vai abalar tudo: os empregos, os lugares que ocupamos na profissão ou nas famílias, mas sobretudo veio enviesar qualquer percepção do amanhã, ainda cinzenta e difusa por muito tempo. Tudo se desarruma agora, para se rearrumar sabe-se lá como num depois qualquer que há-de vir aí.
Há uns dias, na fila do distanciamento social por cumprir da Caixa Geral de Depósitos, disse-me uma mulher já experiente: «Filha, eu digo sempre aos meus que vim do ruim para o bom, mas olhe que o meu filho que está na Suíça já me disse ‘oh mãe olha que a gente agora está a ir do bom para o ruim’».
Ora, nunca como hoje, em tantos anos de paz na Europa, nos foi dada uma oportunidade tão clara de não dar por garantida e continuada essa mesma paz, o emprego e um salário que dê até ao fim do mês, que para muitos não dá ainda. Sabemos que é um contexto frágil e que pode acabar tudo de súbito. Basta pensar um bocadinho.
Mesmo apetrechados de telemóveis, internet, satélites, concentrados de vitaminas e super computadores, uma catástrofe natural, um louco no poder, um vírus contagioso podem, de um momento para o outro, deixar a vida na Terra num caos e nada nos salvará. Uma pandemia: afinal, quem contava com isto?
Nunca a humanidade teve tanta tecnologia e tanta informação disponível e acessível, e por isso nunca esteve tão confrontada com evidências fortes do mal. Eu sei que há negacionistas, terraplanistas e malta que acredita que o Homem não foi à Lua e que as vacinas são prejudiciais. Também sei que elegeram o Trump e o Bolsonaro e outras pessoas que prefiro não nomear porque sei que os metadados associam tudo e não vou dar palco nem ligações web para esse nome.
Mas não me venham dizer que não sabem das guerras, das fomes, dos horrores, das atrocidades, do relento, dos naufrágios, das doenças, dos ditadores, do holocausto, dos campos de concentração, da tortura, dos traumas, das crianças armadas, dos atentados, dos estropiamentos, dos fanatismos, do mal que grassa onde a humanidade não existe.
Não vou em cantigas leves do vai ficar tudo bem, mas quero acreditar que queremos um mundo melhor para os nossos filhos e queremos que eles vão do ruim para o bom ou para o melhor. Que seja esse, aliás, o futuro deles e dos vindouros.
Parece-me, no entanto, que o que queremos é que esse futuro se construa assente nas mesmas premissas que nos trouxeram até aqui. Nas invenções das crises, narrativas históricas nas quais todos sabemos que os ricos acabam sempre por ficar mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, ou se tiverem sorte passarão, em uma ou duas gerações, de pobres para remediados. E quando hoje estamos fartinhos de saber como é que isto acaba, não me venham dizer que vai ser diferente porque vai ser igual.
Amanhã ou daqui a cem anos, se a estrutura social e económica continuar a funcionar alimentada pelos crentes nos relatos televisivos, jornais e modernas redes sociais, de mais uma hecatombe financeira, essa mentira circular do medo e das audiências que enchem os cofres sempre aos mesmos, quando o que há, bem distribuído daria para todos e ainda sobrava.
Mas, tal como as interacções nas redes sociais, também é moderno continuar a acreditar nestas desgraças anunciadas, sem questionar, sem perguntar, em conformismo triste. É que não imaginam o jeito que dá haver gente que não pergunta, não reclama, não dá alternativas, não pensa e é tristemente conformada com o seu fado.
E não me venham dizer que não sabiam quando chegar a hora de escolher. Quando, entre o fanático e o tolerante, escolherem o radicalismo cego e surdo, escolherem a selecção, escolherem as armas, escolherem o silêncio, desistirem dos menos apetrechados, escondendo-se, instalados, por detrás de uma falsa ignorância conformista ao parecer bem e ao não importunar muito.
Sabiam. Sabiam e fingiram que não se incomodavam. Ou, afinal, não se incomodavam mesmo. Sabiam, mas preferiram baixar os olhos, subtrair a consciência. Sabiam, mas deu jeito fazer o jeito. Sabiam. Sabiam, mas os outros serão sempre “os outros”. Quando, um dia, virem os filhos a irem do bom para o ruim, nessa altura bem podem berrar. Sabiam.
Sabiam - margarida trindade
Nunca a humanidade teve tanta tecnologia e tanta informação disponível e acessível, e por isso nunca esteve tão confrontada com evidências fortes do mal
Os nossos quotidianos estão a passar por uma transformação inédita. Pode ser já um lugar comum dizer isto, mas nunca me vou habituar a andar sempre de máscara, a falar com a máscara colocada e a receber e comunicar com os outros sem lhes perceber a expressão.
Este filme futurista onde nos vemos metidos hoje vai abalar tudo: os empregos, os lugares que ocupamos na profissão ou nas famílias, mas sobretudo veio enviesar qualquer percepção do amanhã, ainda cinzenta e difusa por muito tempo. Tudo se desarruma agora, para se rearrumar sabe-se lá como num depois qualquer que há-de vir aí.
Há uns dias, na fila do distanciamento social por cumprir da Caixa Geral de Depósitos, disse-me uma mulher já experiente: «Filha, eu digo sempre aos meus que vim do ruim para o bom, mas olhe que o meu filho que está na Suíça já me disse ‘oh mãe olha que a gente agora está a ir do bom para o ruim’».
Ora, nunca como hoje, em tantos anos de paz na Europa, nos foi dada uma oportunidade tão clara de não dar por garantida e continuada essa mesma paz, o emprego e um salário que dê até ao fim do mês, que para muitos não dá ainda. Sabemos que é um contexto frágil e que pode acabar tudo de súbito. Basta pensar um bocadinho.
Mesmo apetrechados de telemóveis, internet, satélites, concentrados de vitaminas e super computadores, uma catástrofe natural, um louco no poder, um vírus contagioso podem, de um momento para o outro, deixar a vida na Terra num caos e nada nos salvará. Uma pandemia: afinal, quem contava com isto?
Nunca a humanidade teve tanta tecnologia e tanta informação disponível e acessível, e por isso nunca esteve tão confrontada com evidências fortes do mal. Eu sei que há negacionistas, terraplanistas e malta que acredita que o Homem não foi à Lua e que as vacinas são prejudiciais. Também sei que elegeram o Trump e o Bolsonaro e outras pessoas que prefiro não nomear porque sei que os metadados associam tudo e não vou dar palco nem ligações web para esse nome.
Mas não me venham dizer que não sabem das guerras, das fomes, dos horrores, das atrocidades, do relento, dos naufrágios, das doenças, dos ditadores, do holocausto, dos campos de concentração, da tortura, dos traumas, das crianças armadas, dos atentados, dos estropiamentos, dos fanatismos, do mal que grassa onde a humanidade não existe.
Não vou em cantigas leves do vai ficar tudo bem, mas quero acreditar que queremos um mundo melhor para os nossos filhos e queremos que eles vão do ruim para o bom ou para o melhor. Que seja esse, aliás, o futuro deles e dos vindouros.
Parece-me, no entanto, que o que queremos é que esse futuro se construa assente nas mesmas premissas que nos trouxeram até aqui. Nas invenções das crises, narrativas históricas nas quais todos sabemos que os ricos acabam sempre por ficar mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, ou se tiverem sorte passarão, em uma ou duas gerações, de pobres para remediados. E quando hoje estamos fartinhos de saber como é que isto acaba, não me venham dizer que vai ser diferente porque vai ser igual.
Amanhã ou daqui a cem anos, se a estrutura social e económica continuar a funcionar alimentada pelos crentes nos relatos televisivos, jornais e modernas redes sociais, de mais uma hecatombe financeira, essa mentira circular do medo e das audiências que enchem os cofres sempre aos mesmos, quando o que há, bem distribuído daria para todos e ainda sobrava.
Mas, tal como as interacções nas redes sociais, também é moderno continuar a acreditar nestas desgraças anunciadas, sem questionar, sem perguntar, em conformismo triste. É que não imaginam o jeito que dá haver gente que não pergunta, não reclama, não dá alternativas, não pensa e é tristemente conformada com o seu fado.
E não me venham dizer que não sabiam quando chegar a hora de escolher. Quando, entre o fanático e o tolerante, escolherem o radicalismo cego e surdo, escolherem a selecção, escolherem as armas, escolherem o silêncio, desistirem dos menos apetrechados, escondendo-se, instalados, por detrás de uma falsa ignorância conformista ao parecer bem e ao não importunar muito.
Sabiam. Sabiam e fingiram que não se incomodavam. Ou, afinal, não se incomodavam mesmo. Sabiam, mas preferiram baixar os olhos, subtrair a consciência. Sabiam, mas deu jeito fazer o jeito. Sabiam. Sabiam, mas os outros serão sempre “os outros”. Quando, um dia, virem os filhos a irem do bom para o ruim, nessa altura bem podem berrar. Sabiam.
![]() Em meados da década de 60 do século passado, ainda o centro da então vila de Torres Novas pulsava ao ritmo das fábricas. Percorrendo-a, víamos também trabalhadores de pequenas oficinas e vários mesteres. |
![]() Votar é decidir, não votar é deixar a decisão que nos cabe nas mãos de outros. Uma verdade, tantas vezes repetida. No entanto, a abstenção tem mantido uma tendência ascendente nos vários actos eleitorais. |
![]() O funambulismo é uma arte circense que consiste em equilibrar-se, caminhando, saltando ou fazendo acrobacias sobre uma corda bamba ou um cabo metálico, esticados entre dois pontos de apoio. Ao funambulista cabe a difícil tarefa de chegar ao segundo ponto de apoio sem partir o pescoço. |
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É plausível afirmar que o corpo político, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga da pandemia, não tem estado feliz na actual situação. Refiro-me ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos dirigentes das várias oposições. |
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![]() Sinto que estou sempre a dizer o mesmo, que os meus textos são repetições cíclicas dos mesmos assuntos e que estes são, só por si, repetições cíclicas e enfadonhas deles próprios. |
![]() Foi paradigmático o facto de, aquando da confirmação (pela enésima vez) da intenção do Governo em avançar com o TGV Lisboa/Porto, as únicas críticas, reparos ou protestos de autarcas da região terem tido por base a habitual choraminga do “também queremos o comboio ao pé da porta”. |
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O TGV, o Ribatejo e o futuro das regiões - joão carlos lopes |
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