A Mala
"O tempo não parou e o milénio passou a ser o nosso enquanto a história esfrega um olho"
É uma das mais poderosas e iconográficas imagens do século XX português: homens, mulheres, crianças, carregando malas enormes e pesadas para dentro do Sud Expresso, rumo a Paris, exalando aquela pobreza granítica do quadro O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar. Pessoas entre a humildade e a miséria de uma analfabética vida sem história, muitas sem nunca terem visto o mar num país que foi à beira-mar plantado ou alguma vez pisado a capital do império, sendo antes este a tê-las pisado toda a vida. Aquelas malas enormes e pesadas são muito mais do que malas: são uma vida levada aos ombros, desde a pobre aldeia portuguesa até aos esgotos sombrios da cidade-luz.
Fiz três vezes o Sud Express, duas antes do 25 de Abril e outra no Verão de 74. Faz bastante tempo, a minha idade era pouca, mas lembro-me bem das grandes malas mas também de sacos, saquinhos e sacolas, com batatas, enchidos, queijos, garrafões de vinho ou azeite lá da terra. Ao longo de dois longos dias numa carruagem onde se conversava, comia e, depois, à noite, também se dormia, e no meio de toda aquela tralha, respirava-se uma homérica atmosfera de viagem, uma experiência de transfiguração social, com a Espanha a fazer de mar informe entre uma Ítaca que ficou para trás e o desconhecido mas sem qualquer doce Penélope para cujos braços voltar, apenas uma esquelética miséria para esquecer de vez.
Hoje, embora também já sejamos um país de imigrantes, continuamos a ser um país de emigrantes. Porém, nada que ver com os míticos avós dos anos 60, os quais ainda eram filhos das personagens de As Vinhas da Ira em busca das belas laranjeiras da Califórnia. O modo como viajam hoje os novos emigrantes, já não para se atolarem nos esgotos de Paris mas para as simplesmente modestas periferias de Londres, Frankfurt, Amsterdão ou Copenhaga, faz-me lembrar a primeira das seis conferências de Italo Calvino, em Harvard, no longínquo ano de 1984, intitulada “Leveza”, reunidas num livro chamado “Seis propostas para o próximo milénio”.
O tempo não parou e o milénio passou a ser o nosso enquanto a história esfrega um olho. A primeira ideia que me vem à cabeça ao pensar na emigração dos nossos millennials é a de “leveza”. O lento Sud Expresso, carregado de batatas, enchidos, azeite e muita angústia, deu lugar a voos low cost da Ryanair ou da Easyjet, levando pelo ar jovens que falam Inglês e há muito conectados ao mundo, demorando o mesmo que uma singela viagem de comboio entre Lisboa e Aveiro. Entretanto, o bidonville lá no esgoto de Paris, deu lugar a um apartamento com wi-fi, onde, a todo o momento, via facebook, whatsapp, skype ou chamadas já sem roaming, se está ligado a todo o mundo e a qualquer hora.
Mas são as malas. São as malas, de porão ou cabine, com as suas pueris rodinhas, que nos dão o sentido da história. Em vez de trágicos sísifos, carregando enormes e pesados rochedos, temos jovens deambulando em assépicos e climatizados aeroportos, com phones nos ouvidos, telemóvel na mão direita e mão esquerda a fazer deslizar uma mala com rodinhas, o que até pode ser feito com as pontas dos dedos. O emigrante de hoje faz lembrar as criancinhas da escola primária em dia de visita de estudo, levando a sua mochila de rodinhas com o seu lanchinho para comer a meio da manhã. Como ousaria pensar o velho Paracelso, os sísifos de outrora transformaram-se nas sílfides de hoje.
Felizmente, convenhamos.
A Mala
O tempo não parou e o milénio passou a ser o nosso enquanto a história esfrega um olho
É uma das mais poderosas e iconográficas imagens do século XX português: homens, mulheres, crianças, carregando malas enormes e pesadas para dentro do Sud Expresso, rumo a Paris, exalando aquela pobreza granítica do quadro O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar. Pessoas entre a humildade e a miséria de uma analfabética vida sem história, muitas sem nunca terem visto o mar num país que foi à beira-mar plantado ou alguma vez pisado a capital do império, sendo antes este a tê-las pisado toda a vida. Aquelas malas enormes e pesadas são muito mais do que malas: são uma vida levada aos ombros, desde a pobre aldeia portuguesa até aos esgotos sombrios da cidade-luz.
Fiz três vezes o Sud Express, duas antes do 25 de Abril e outra no Verão de 74. Faz bastante tempo, a minha idade era pouca, mas lembro-me bem das grandes malas mas também de sacos, saquinhos e sacolas, com batatas, enchidos, queijos, garrafões de vinho ou azeite lá da terra. Ao longo de dois longos dias numa carruagem onde se conversava, comia e, depois, à noite, também se dormia, e no meio de toda aquela tralha, respirava-se uma homérica atmosfera de viagem, uma experiência de transfiguração social, com a Espanha a fazer de mar informe entre uma Ítaca que ficou para trás e o desconhecido mas sem qualquer doce Penélope para cujos braços voltar, apenas uma esquelética miséria para esquecer de vez.
Hoje, embora também já sejamos um país de imigrantes, continuamos a ser um país de emigrantes. Porém, nada que ver com os míticos avós dos anos 60, os quais ainda eram filhos das personagens de As Vinhas da Ira em busca das belas laranjeiras da Califórnia. O modo como viajam hoje os novos emigrantes, já não para se atolarem nos esgotos de Paris mas para as simplesmente modestas periferias de Londres, Frankfurt, Amsterdão ou Copenhaga, faz-me lembrar a primeira das seis conferências de Italo Calvino, em Harvard, no longínquo ano de 1984, intitulada “Leveza”, reunidas num livro chamado “Seis propostas para o próximo milénio”.
O tempo não parou e o milénio passou a ser o nosso enquanto a história esfrega um olho. A primeira ideia que me vem à cabeça ao pensar na emigração dos nossos millennials é a de “leveza”. O lento Sud Expresso, carregado de batatas, enchidos, azeite e muita angústia, deu lugar a voos low cost da Ryanair ou da Easyjet, levando pelo ar jovens que falam Inglês e há muito conectados ao mundo, demorando o mesmo que uma singela viagem de comboio entre Lisboa e Aveiro. Entretanto, o bidonville lá no esgoto de Paris, deu lugar a um apartamento com wi-fi, onde, a todo o momento, via facebook, whatsapp, skype ou chamadas já sem roaming, se está ligado a todo o mundo e a qualquer hora.
Mas são as malas. São as malas, de porão ou cabine, com as suas pueris rodinhas, que nos dão o sentido da história. Em vez de trágicos sísifos, carregando enormes e pesados rochedos, temos jovens deambulando em assépicos e climatizados aeroportos, com phones nos ouvidos, telemóvel na mão direita e mão esquerda a fazer deslizar uma mala com rodinhas, o que até pode ser feito com as pontas dos dedos. O emigrante de hoje faz lembrar as criancinhas da escola primária em dia de visita de estudo, levando a sua mochila de rodinhas com o seu lanchinho para comer a meio da manhã. Como ousaria pensar o velho Paracelso, os sísifos de outrora transformaram-se nas sílfides de hoje.
Felizmente, convenhamos.
![]() Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. |
![]() "Hire a clown, get a circus" * Ele é antissistema. Prometeu limpar o aparelho político de toda a corrupção. Não tem filtros e, como o povo gosta, “chama os bois pelo nome”, não poupando pessoas ou entidades. |
![]() A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. |
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![]() Agora que nos estamos a aproximar, no calendário católico, da Páscoa, talvez valha a pena meditar nos versículos 36, 37 e 38, do Capítulo 18, do Evangelho de João. Depois de entregue a Pôncio Pilatos, Jesus respondeu à pergunta deste: Que fizeste? Dito de outro modo: de que és culpado? Ora, a resposta de Jesus é surpreendente: «O meu reino não é deste mundo. |